Entre Ponta Delgada e (talvez) Manchester
1 - Na passada sexta-feira, eu estava em Ponta Delgada. Fui lá fazer uma conferência que, por ironia, se iniciou no preciso momento em que, em Alvalade, começava o dérbi mais representativo do campeonato nacional. Minutos antes, soube do desaire do FC Porto diante do SC Braga. Uma boa notícia para mim, ainda que, então, sem saber os detalhes do que se passou no Dragão. Entre a conferência e as perguntas e respostas subsequentes mediou, mais minuto, menos minuto, o tempo que estimara ser o do jogo em Lisboa. Todavia, entendi, só voltar a ligar o telemóvel quando chegasse ao hotel. Chuviscava e na cidade açoriana havia já o silêncio de uma noite de Inverno. Mas, como não ia a conduzir, estive vai não vai para ligar o telemóvel. A meio do trajecto, e no meio de uma amena conversa com quem me levava ao hotel (e para quem o futebol é uma realidade longínqua), olhei para um café onde se via uma televisão, ainda que ao longe. A brevíssima imagem que pude entrever foi a de um abraço colectivo da equipa do meu Benfica. Olhei para o relógio, fiz um cálculo aproximado, e concluí que o encontro já deveria ter terminado há alguns minutos. Como tal, fiquei na dúvida entre uma feliz expectativa de ser uma imagem de quem, no fim, se abraça para festejar uma vitória ou a de um momento de um golo do Benfica num daqueles resumos que se fazem a seguir aos jogos. De um ponto apenas, tinha a certeza: que o meu clube marcara pelo menos um golo, independentemente do resultado. Na altura, lembrei-me dos anos que vivi bem perto do velhinho Estádio da Luz e em que os jogos eram às 15 ou 16 horas da tarde, sem transmissões televisivas. Era tão perto, que a minha mulher, na maior parte dos casos, sabia - sem lá estar e sem ouvir a rádio - se e quantos golos o Benfica marcara, apenas lhe faltando saber se e quantos sofrera, pois que, para estes, o barulho do festejo era substituído pelo silêncio do não festejo. Imaginei até que hoje tal contabilidade de golos à distância já não seria possível, sobretudo por causa da existência do VAR, o que levaria a contar em versão duplicada os golos confirmados em jeito de festejo a papel químico, ou a não descontar os golos que o VAR anularia, depois de fartos minutos.
Volto à minha curta viagem até ao hotel em São Miguel. Entrei, com indisfarçável ansiedade, no meu quarto, onde, finalmente, anulei o modo de voo do telemóvel e logo fui a voar para o desfecho da vitória do Benfica por 2-0. Regressado a Lisboa, no dia seguinte, pude então verificar que o momento que vi, de permeio, na principal avenida de Ponta Delgada, era, afinal, a apoteose do segundo golo de Rafa e também só então me apercebi de uma compensação de 10 minutos e das tochas dos vencidos.
2 - Depois da vitória em Alvalade, sem casos técnicos da arbitragem para excitar pacóvios, ficou concluída a primeira metade do campeonato nacional, com uma pontuação recorde de 94% do líder Benfica, com 16 vitórias em 17 partidas. É o melhor ataque com uma média de 2,5 golos por desafio, é a melhor defesa, consentindo que apenas em 5 dos 17 jogos a sua baliza tivesse sido alcançada (6 golos, média de 0,35). Tem os dois melhores marcadores da Liga, Pizzi e Vinícius. Leva 14 jogos consecutivos sempre a vencer. E, com Bruno Lage no comando, atingiu um novo e categórico recorde de 17 jogos fora de casa sempre vitorioso. Se lhes juntarmos todas as jornadas sob o seu comando, alcançaram-se 103 pontos em 108 possíveis (95,4%)! E está com 7 pontos de vantagem sobre o Porto e 19 (!) sobre o seu rival mais histórico.
Esta expressão indesmentível de supremacia, nesta contagem parcelar, só por si não significa, porém, que a vitória final esteja assegurada. Fez bem Luís Filipe Vieira em avisar para a necessidade de se continuar, concentradamente, no mesmo trilho, fez bem Bruno Lage em não entrar em exaltações prematuras, faremos nós sócios e adeptos do clube bem em não sermos sobranceiros e nos deixarmos enlevar pelo registo até agora. Precisamente no mesmo ponto da época passada, tínhamos 5 pontos de atraso em relação ao então líder (chegaram a ser 7) e, como tal, é necessário entender que o futebol tem imprevistos que, não obedecendo às estatísticas, podem surgir pela imprevisibilidade inerente a este desporto. Basta, aliás, comparar os últimos dois jogos: a partida contra o Desportivo das Aves, último classificado e então com apenas 6 pontos, acabou por ser bem mais complicada do que a vitória em Alvalade, onde o Benfica não perde para o campeonato vai para o nono ano consecutivo.
3 - Com a reabertura do mercado de transferências neste mês de Janeiro, voltou, em reprise, o sai-não-sai de Bruno Fernandes. Liga-se a rádio, lêem-se os títulos dos jornais, e, sobretudo, abrem-se todos os programas televisivos das variadas séries mercado e só dá quase Bruno Fernandes. Enjoa de tanto ouvir, chega mesmo a ser patético e ridículo. Parece ser a grande questão do desígnio nacional. Depois de, no Verão, haver o Tottenham e outros clubes interessados, do anúncio do R. Madrid de atacar em Janeiro, desta feita tudo se vem concentrando na cidade inglesa de Manchester. Escutam-se «notícias de última hora» que contrariam «notícias de última hora» da hora anterior. Com voz de quem está a anunciar um armistício (ou o seu contrário) e com semblantes patrioticamente carregados, há uns mais dotados do que outros a criar suspense quase hitchkokiano (abro um parêntesis para registar o equilíbrio, a sensatez, a competência mediática de Cândido Costa). Umas vezes são milhões com monos de jogadores, alguns dos quais o comum dos mortais jamais saberia da sua existência, outras vezes são milhões mais bónus com ónus. Umas vezes «podemos garantir que o desfecho do negócio está preso por detalhes», outras alturas nos anunciam que «há mais interessados» ou que «afinal os detalhes não eram detalhes». Ainda e sempre a comparação com João Félix, numa contabilidade tão criativa, como inconsequente (não esqueçamos a natureza do investimento do clube comprador: Félix foi transferido com 19 anos, Bruno vai a caminho dos 26).
Uf! Vá lá, decidam: ou vai ou fica, mas por uma questão de despoluição, arrumemos o assunto que, entre os canais generalistas por cabo, supera largamente horas e horas, com direito a repetição, música de fundo e oráculos a correr nos ecrãs desde a madrugada até à noite.
Então nos dias que antecederam o dérbi lisboeta, foi um fartote especulativo sobre a magna questão de sabermos se o craque ainda jogaria contra o Benfica ou não. Houve informação a insinuar que o Sporting ia protelar a conclusão do negócio para que ele jogasse contra o Benfica e contribuísse para um dos maiores desejos verde-e-brancos que é o de vencer o campeonato da segunda circular. Cheguei a pensar que o atleta terminaria o encontro e pegava na mala direitinho ao aeroporto. E, de quando em vez, pensei na pequenez dos jogadores do Benfica face à presença do magno jogador. Qual Pizzi, qual Rafa, qual Rúben, qual carapuça. Até me tirou o sono tal problemática. Tudo isto, numa sequência de responsabilidade do SCP de agir, por acção ou omissão, como quem está a exportar mercadoria e como se o atleta (e a pessoa) pouco contasse. Ora Bruno Fernandes bem merece ser respeitado e recompensado, pois se trata de um jogador de excepção, que tudo deu e aceitou no Sporting. E o que adiantou ao SCP que o jogador tivesse ficado na equipa até este momento da época? Se se vier a concretizar a transferência para o melhor campeonato do mundo, desejo-lhe, sinceramente, as maiores felicidades, a que apenas acrescentaria o imperativo de, em terra de Sua Majestade, não estar sempre a barafustar com tudo e com todos como faz por cá (e já agora cuidado com as portas que não são as do Boavista, nem a disciplina da nossa Liga é a da Premier League…).