Entre Pizzi e C.ª e pisões dispensáveis
1Comecei a escrever regularmente para A BOLA em Setembro de 2010. Na minha anterior coluna Pontapé-de-saída fiz 689 textos. Na actual coluna de página inteira Contador da Luz este texto será o 82º. Ou seja, no total aproximo-me das oito centenas, qualquer coisa como 1 milhão e oitocentos mil caracteres. Vem isto a propósito do que me veio à memória quando fui convidado a escrever no jornal e que, então, disse ao director Vítor Serpa: que o meu principal receio era o de achar que nem sempre teria matéria que considerasse interessante para escrever, pelo menos segundo o meu critério.
Verifico agora que tal angústia de tema não se me terá assolado com frequência, mas - confesso - mesmo assim, ainda não me libertei de um qualquer buraco negro temático ao virar da esquina. Evidentemente que há sempre o recurso a repetições mais ou menos travestidas de coisas novas ou a comentar tão-só jogos que, todavia, os jornalistas sempre farão bem melhor do que eu.
Vem isto a propósito dos motivos da escrita deste artigo. Já não falo do (bi) Benfica 6-Sporting 3, amplamente dissecado por muita gente, antes de mim. Talvez pudesse escrever sobre essa originalidade estúpida de mediarem dois meses entre o primeiro jogo de uma meia-final da Taça de Portugal e a segunda partida, mas seria perda de tempo perante o absurdo.
Eis quando nos últimos dias, houve um farto motivo de excelência e um outro de lamento para escrever. Começo, naturalmente, pelo primeiro: a vitória por 10-0 do Benfica, 55 anos depois. Uma exibição notável de uma equipa que, se continuar a jogar assim, pode ser campeã. Voltaram a alegria, a vivacidade, a verticalidade e a velocidade. E, mais do que isso, jogaram-se os 90 minutos, como se o resultado estivesse empatado, assim honrando a camisola. Ninguém se sente dono de um qualquer posto. Todos sabem que, com trabalho, terão a sua oportunidade. Assim se estrearam mais dois jovens das escolas (Ferro e Florentino, belas exibições), voltou Jonas como um jovem sedento de afirmação, brilharam Grimaldo (que forma!), Seferovic (que força e vontade!), Pizzi (como ele se sente bem melhor neste esquema), Rafa (com um tipo de jogo mais equilibrado e eficaz), Samaris (até fez esquecer o lesionado Fejsa), Gabriel (como foi possível desbaratar, antes, as suas capacidades?) e o menino João Félix que estava a ser integrado medrosamente e aos soluços, não esquecendo todos os outros intervenientes e o que há muitos, muitos anos não se via no SLB, ou seja, dois centrais portugueses. Mas, acima de tudo, melhor do que cada individualidade foi o colectivo. Guardo como deliciosa a jogada de puro futebol associativo aos 32 minutos que se tivesse dado golo passaria a fazer parte da montra mundial deste desporto. Para tudo isto tem sido decisivo o trabalho de Bruno Lage, quer na explanação do plantel, quer no que se pode entrever de qualidade do treino, quer nas palavras sempre calmas, sem se pavonear, sem alardes inconsequentes, mantendo a cabeça fria, nos bons, como nos maus momentos. Estivemos a 3 minutos de passar a liderar a classificação, mas os minutos extra e os minutos extra depois dos minutos extra para as bandas do FCP já não são, infelizmente, notícia. São rotina.
Todavia, o futebol é sempre imprevisível. Nada de euforias dispersantes e contraproducentes. Como disse Bruno Lage, «temos de ir focados para todos os jogos, a saber o que temos de fazer, a saber qual é a estratégia. O resto não existe.»
2 O segundo assunto é tudo menos um hino à arte de bem jogar como foi o jogo do Benfica. Pelo contrário, foram duas nódoas de olhar para o futebol, sem respeito e sem lisura. A primeira refere-se a uma frase dita na televisão pública por um seu comentador residente e ex-jogador de futebol Jorge Andrade: «Eu, se ainda jogasse, dava só um pisão no João Félix e não havia mais João Félix durante o jogo». A segunda proferida pelo actual director do jornal do Benfica e comentador da BTV, José Nuno Martins, referindo-se àquele jogador, entre outros epítetos, como «besta negra». Ao que julgo, ambas as asserções ditas por pessoas que são pagas no exercício dessas funções. Uma por nós todos, por via da RTP. Outra pelos benfiquistas, por via dos leitores do jornal e dos sócios.
É certo que ambos os visados se retractaram e pediram desculpa pelas expressões que usaram e isso é de enaltecer. Mas uma coisa é aceitarmos essas desculpas perante momentos infelizes que a qualquer pessoa pode acontecer. Outro diferente aspecto é o que subjaz ao que foi dito e que, depois da poeira assente, revela um estado doentio do futebol que obnubila mentes que se querem responsáveis e modelares.
Ainda que não levando à letra as palavras de Jorge Andrade e mesmo aceitando que apenas quis dizer que poria João Félix em sentido com o seu poderio físico, a sua declaração não deixa de ser profundamente infeliz.
Repare-se na construção da frase do ex-jogador: 1) «se eu ainda jogasse», querendo transmitir uma ideia de experiência acumulada e de incitamento para memória futura; 2) «dava um só pisão», talvez lembrando-se da relativa impunidade arbitral para com o dito pisão, pelo que bastaria uma só pisadela forte para resolver o incómodo quanto mais cedo melhor para arrumar com o adversário numa fase do jogo em que as cartolinas ainda costumam estar congeladas no bolso dos árbitros; 3) «e não havia mais João Félix durante o jogo», assim exprimindo, sem peias, o nexo de causalidade absoluta entre o pisão e o não João Félix. Por outras palavras, o prematuro pisão transformaria o pobre do João Félix numa espécie de pisa-papéis imóvel e com fins decorativos, como são todos estes objectos.
No fundo, afirmou que a melhor maneira de anular ou esbater a capacidade técnica e artística de um talento é meter-lhe medo, mostrar-lhe os pitons, contrariar o virtuosismo com agressividade para além do tolerável. Por isso, disse «pisão» que é a apologia do excesso de investida física e a declaração de incapacidade de outros meios para contrariar o adversário. Certamente, Jorge Andrade usou muito a memória dos seus tempos de jogador em que a impunidade face aos pisões no seu clube era a regra, ele que até terminou a sua magnífica carreira cedo, flagelado por sucessivas lesões.
Imagine-se o futebol actual com a generalização da fatwa futebolística proclamada por Jorge Andrade que nos sugere o primado físico necessário para anular a primazia técnica e virtuosa indispensável. Imagine-se Messi, Ronaldo, Salah, Neymar, Bernardo Silva e tantos outros artistas sujeitos, sem dó, nem piedade, a «não haver mais nenhum deles durante o jogo» parafraseando o comentador.
Li que Jorge Andrade vai para a equipa técnica do Vitória de Setúbal. Desejo-lhe boa sorte. Mas também espero que Bruno Lage não ponha João Félix - que, como ouvi há dias, tem cara de 9 anos, idade de 19 e maturidade de 29 - a jogar na partida que terá de efectuar com os sadinos em Maio no estádio da Luz. Evitam-se eventuais pisões.
Entretanto, João Félix deu-lhe a devida resposta no domingo, na Luz.