Encontro com o dérbi a subir o Chiado
Lisboa resigna-se triste e silenciosa às limitações da pandemia. Sem a multidão de estrangeiros, é agora uma cidade algo perdida de si mesma
SUBO o Chiado ao final da tarde. Um casal de turistas parece extasiado em frente à Brasileira, por todo aquele ambiente clássico do início do século XX que nos deixa a imaginação voar até ao tempo em que a longa sala servia de base animada para a discussão dos politólogos da época, divididos entre a defesa da monarquia constitucional e a República renovadora. Em frente, um músico de rua toca animadamente uma peça de jazz. Não tem grande audiência, até porque o frio afugenta os clientes da esplanada. A meia dúzia de metros, um artista amador expõe os seus trabalhos de cartões de Natal pintados com motivos da cidade e o habitual pedinte, que faz da porta da livraria Bertrand o seu local habitual de trabalho, pede encarecidamente uma moedinha a quem passa
Lisboa resigna-se, triste e silenciosa, ao regresso das limitações provocadas pela pandemia. É, agora, uma cidade um pouco perdida de si mesma, quase diria sem sentido, quando assim se desencontra de um turismo que ainda há uns meses, talvez, até, há umas semanas, formigava nervoso e entusiástico pelas ruas estreitas dos bairros históricos, estendia-se pelas bonitas margens do Tejo, alcançava o alto das colinas para vistas deslumbrantes.
O Porto talvez ainda seja uma cidade de portuenses. Lisboa já não sobrevive a uma cidade de lisboetas. São demasiados os migrantes de todos lugares e regiões do país e de fora. O Chiado torna-se apenas um lugar de passagem de gente com menos afazeres e que se diverte com a forma arcaica de espalhar boatos boca à boca. «Olhe, desculpe, podia-me confirmar que o Otamendi também tem Covid? Um colega de trabalho garantiu-me que sim, mas eu não consegui ainda confirmar» - eis a pergunta desenvergonhada do meu incógnito interlocutor, que me reconheceu das lides de jornais e de A BOLA TV. Era apenas uma dúvida inocente. Muito menos perigosa do que aquelas que se formaram ao longo dos últimos dias pela pirataria desenfreada das redes sociais.
Volto à memória da Brasileira e daquele tempo, no início dos anos setenta, quando lá ia jantar o famoso bife à café com o Carlos Pinhão e se falava de política antiregime até o empregado, o fiel senhor Madeira, nos vir interromper com uma previsão do tempo, que era a senha combinada para o aviso de que havia pides por perto.
Para ser verdadeiro, não se falava apenas de política e de conspirações antimarcelistas. Falávamos da vida e se estivéssemos em vésperas de dérbi, nada se tornava mais importante. O futebol dominava atenções e os dérbis - achávamos nós, com óbvio exagero - dominavam o mundo.
Na verdade, não há, no futebol português, outro jogo de futebol igual. Pode um dos clubes estar na mó de baixo que o dérbi não estremece e ninguém vacila a entregar-se com o maior entusiasmo à conjetura do que poderá vir a acontecer. Há outros jogos grandes, evidentemente, até jogos que podem valer títulos, e há outros dérbis de cidade ou de região. Alguns, pouco amigos da verdade histórica, acabam a confundir tudo e começam a chamar dérbi a um Sporting-Belenenses, ou a um Boavista-Leixões. Pior, quando chamam dérbi a um Benfica-FC Porto que, é, apenas, e só, um clássico. Na verdade, até podemos admitir que existam vários dérbis, mas O DÉRBI é só um, o Benfica-Sporting ou o Sporting-Benfica. É o jogo de todos os jogos. O jogo-rei, independentemente das classificações e de cada momento. Enfim, estamos num país livre, haverá, por certo, outros argumentos, mas diz o povo - e quase sempre tem razão - que contra factos não existem argumentos. E assim é com o dérbi.
O PÚBLICO E OS ESPETÁCULOS
Há perguntas lúcidas que importa serem respondidas. Perguntava alguém, recentemente, num canal da TV: «Para entrar num recinto ao ar livre, como um estádio de futebol, preciso de certificado de vacinação e de prova de um teste negativo, mas para entrar num Centro Comercial, que é, por estes tempos, um espaço fechado a abarrotar de gente, não preciso de teste algum. Faz sentido?» À primeira vista, não faz sentido. Talvez se explique por essa ideia que se está a generalizar de que o público é uma contrariedade para os espetáculos.
O PASSAGEIRO E O MOTORISTA
Eduardo Cabrita sucumbiu à palavra. É o problema de uma comunicação de improviso. Pode tornar-se, sempre, numa armadilha. Quando disse que era «apenas o passageiro» do carro que, em excesso de velocidade, esteve envolvido no acidente que matou um trabalhador na autoestrada, o ministro traçou o destino que tanto procurou adiar. É que, de facto, Cabrita não era apenas o passageiro que comprara um bilhete para apanhar o autocarro. Era o patrão do motorista que não iria tão depressa só porque queria chegar cedo a casa.