Dos avarentos
Na Superliga não haveria só o Harpagão do Molière, haveria o pior de ‘O Avarento’...
EMOCIONANTE fora já, para mim, a reação (em toque poético) de Daniel Podence. Depois, do rebuliço em que o futebol se metera ante a notícia da criação da Superliga Europeia, saltou-me à vista do coração o cartaz à sombra de Old Trafford: «Criado pelos pobres, roubado pelos ricos» - e, em alvoroço, continuei a ouvir, espalhado, a quatro ventos, o clamor de Ceferin:
- … esses 12 clubes têm uma intenção vergonhosa e egoísta. Não lhes quero chamar uma dúzia batoteira, mas...
Não foi, porém, o The Dirty Dozen de Aldrich que, então, me saltou à ideia (porque em Doze Indomáveis Patifes há a nobreza de quem se atira à missão contra os nazis em busca de liberdade quando nada mais se tem a perder - e ali não…) - o que me saltou à ideia foi O Avarento do Molière. O avarento do Molière é Harpagão - o velho fuinha que carrega a própria prole para as suas mesquinharias, que desconfia da lealdade de todos os que se cruzam com ele na vida, que chega ao ponto de querer levar a tribunal o gato do vizinho por lhe comer, sorrateiro, o resto de esmifrado pernil de carneiro). O avarento de Molière é Harpagão - o sórdido unha de fome que mercadeja dotes e casamentos, se cambalacha com a alcoviteira para puxar para seus braços a noiva do filho; que, na defesa do seu escondido tesouro, impede felicidades alheias descendo por ações escorregadiças, que se embrulha em zombarias e magica safadezas, que deseja forcas e carrascos - vendo, nos demais, aquilo que ele é, afinal: doido, patife, velhaco…
Se a Superliga não tivesse o destino que teve (por força de poder popular e de um novo Brexit) seria esse Harpagão (em 12 versões da sua sovinice, nos 5000 milhões que o JP Morgan se dispunha a lançar-lhes) a dar-lhe forma e futuro. E teria, decerto, a soltar-se de lá ainda mais da perversidade que O Avarento do Molière tem - em jogos de beatos a acreditarem no pior dos deuses, de advogados a fintarem o mérito com o pior das leis ou de cínicos a iludirem-se com o pior das honrarias (e seus snobes delírios).