Dois livros clássicos para este tempo

OPINIÃO22.03.202003:00

1 - No século XIV, em 1353, Bocaccio escreveu um clássico, Decameron, que aí está de novo a ser lido por toda a Itália e não só. Alguns nobres, bem jovens, de Florença, fogem da peste que estava a assolar a Europa no século XIV. Refugiam-se, longe da cidade, numa casa bem afastada de tudo, sete mulheres e três homens; e logo no início tentam decidir o que fazer nesses dias de clausura:

«Falou então Pampinea.

- ... trouxe-lhes os tabuleiros de damas e de xadrez, podem distrair-se conforme quiserem. Todavia, se querem escutar um conselho, creio ser preferível não jogar.»

O jogo, a primeira hipótese, jogo de mesa, jogo tranquilo. Mas Pampinea diz que não é a melhor hipótese: «Uma das consequências imutáveis do jogo é conseguir sempre indispor um dos parceiros, e nem os adversários e tão pouco os espectadores extraem qualquer prazer dessa indisposição.» Logo a seguir, Pampinea sugere uma outra tarefa: «Ora, se cada um de nós relatasse uma história, todos ficariam contentes.» A história como o factor de entretenimento, sem vencedores nem vencidos, sem resultado: não há dois lados.

E assim estão lançados os dados neste clássico da literatura italiana. Cada um dos dez jovens irá narrar dez histórias, alternando com as histórias dos outros. Estamos quase diante de uma relação matemática: dez pessoas contam dez histórias. A contagem dos dias é importante, daí estas contas quase certas. São estas histórias que constituem o Decameron, histórias para fazer esquecer a peste.

Em poucos dias, no século XXI, Decameron de Bocaccio tornou-se um dos livros mais vendidos na Amazon. Em Portugal, há várias edições deste clássico italiano terrivelmente colocado de novo no centro. No centro de Itália e não só.

O que é forte no livro é esta incrível semelhança com o presente. Entre outras coisas, é central esta questão: a aceleração das decisões éticas que baralham cada cidadão nos dias de hoje. O que é mais correcto? Por um lado, estes dez jovens têm um abrigo para o qual podem fugir, ao contrário de muitos, que têm de estar na cidade a fazer trabalhos urgentes para a comunidade ou para si próprios, para sobreviverem. E, por isso, os dez jovens sentem-se em parte culpados, por abandonarem de certa maneira a comunidade - como se fossem desertores, traidores. Mas, por outro lado, sentem que não há alternativa e tentam criar ali, em reclusão, uma pequena comunidade, uma nova fraternidade que possa sair dali, mais tarde, e contribuir para reconstruir uma nova relação entre as pessoas, uma outra utopia.

2 - Um dos outros clássicos sobre este tema, A Peste, de Albert Camus, publicado em 1947. Neste livro o futebol está sempre presente, tal como em muitas outras obras de Camus.

Procurando não pensar na peste, Rambert e a personagem referida no romance como «cara de cavalo» tentam encontrar um tema de diálogo:

«O resto do almoço passou-se a procurar um assunto de conversa. Mas tudo se tornou muito fácil quando Rambert descobriu que o da cara de cavalo era jogador de futebol. Ele próprio praticara muito esse desporto.» Antes, como agora, o futebol era tema central, o centro de muita linguagem e, com isso, de muitas ligações afectivas. Camus continua: «Falou-se, pois, do campeonato de França, do valor das equipas profissionais inglesas e da táctica em WM. No fim do almoço, o da cara de cavalo tinha-se animado completamente e tratava Rambert por tu, para o persuadir de que não havia lugar mais belo numa equipa que o de defesa central.»

O que é interessante é que, de repente, naquele contexto, começa uma discussão de pormenores tácticos, como se os tempos fossem rotineiros e não de excepção.

«Compreendes», dizia ele, «o defesa central é quem distribui o jogo. E distribuir o jogo, isso é futebol.» Rambert era dessa opinião, embora tivesse sempre jogado a avançado-centro.

A discussão apenas foi interrompida por um aparelho de rádio que, depois de ter entoado em surdina melodias sentimentais, anunciou que na véspera a peste tinha feito cento e trinta e sete vítimas.

E depois desta terrível informação, o diálogo prossegue:

«-Isto não é nada - concluiu González (…). - Pensa só em todas as combinações, passagens e ataques que é preciso fazer antes de marcar um golo.

- Decerto - disse ainda Rambert -, mas o jogo só dura hora e meia.»

O jogo só dura hora e meia. O que nos está a acontecer não.