Do Agostinho
Meu caro João Almeida:
ANTES de te dizer o que quero mesmo dizer-te, daqui, do alto da minha eternidade, vou contar-te o que não sei se tu sabes. Andara por Moçambique na guerra colonial e ao regressar à terra trouxe um pouquito de dinheiro que me pôs em dúvida: se, com ele, comprava um gira-discos ou uma bicicleta. Escolhi a bicicleta - pensando usá-la em vez da velha pasteleira nas viagens para o trabalho de lavoura, de Brejenjas para Torres Vedras. Não longe de mim vivia João Roque, grande ciclista do Sporting - e estando eu a caminho dos 25 anos, ao apanhar que no Natal de 1967 se disputaria o Circuito do Barro, falei-lhe do desejo de lá ir - e ele, entusiasmando-me, ainda me propôs: «Queres comprar sapatos velhos e um equipamento que não uso? Faço-te preço de amigo.» Com isso desatei a treinar-me só, pela zona: ia ao Bombarral, a Mafra, a Torres - a A-dos-Francos não, não cheguei. Em Barro deixei o segundo a mais de uma volta - e o sr. Roque levou-me para o Sporting. Sem que meio ano passasse perdi por uma nesga a Volta a Portugal. Logo depois, ganhei, no Brasil, a Volta a São Paulo - e Grimaldy desafiou-me ao Tour de 69. Após vitória na quinta etapa, queda brutal (seria o meu martírio, a minha tragédia) obrigou-me a cortar a meta a pé, com a bicicleta na mão. Quando larguei dores, adesivos e curativos, sempre atrevido e destemido, logo venci outra etapa. Ao chegar a Paris em oitavo da geral, no dia em que Neil Armstrong pisou a lua, Odile Grant, a jornalista que parecia estrela de Hollywood, tratou-me como «o bouxeur do ciclismo» - e sublinhou o que todos os seus colegas afirmaram de uma forma ou outra: «Melhor do que Tinô só Merckx - sem os azares que sofreu seria segundo, pelo menos.» Tudo isto te contei só para que percebas o que te quero dizer: que, cá do alto da minha eternidade, me tenho emocionado a ver-te, no Giro, com o melhor de mim nas tuas pernas e na tua cabeça.
Deste teu cada vez mais admirador,
Joaquim Agostinho.