Direitos humanos no desporto e não só
O Catar foi uma escolha lamentável mas o mundo é assim. Hipócrita e falso como também se prova pelas pobres conclusões da Cimeira Climática
SEGUNDO o credível jornal inglês The Guardian, mais de seis mil operários nepaleses, bengalis, cingaleses, pakis e indianos terão morrido nas megaconstruções feitas no Catar para tornar possível uma realização luxuosa do Campeonato do Mundo de 2022. Não existem números oficiais sobre a mortalidade de operários migrantes no Catar durante o período de construção dos estádios e das suas infraestruturas, admite-se que ultrapasse os números que têm sido divulgados e apenas se reconhece que, depois das primeiras acusações explícitas à falta de segurança e de condições de vida dos operários contratados, o governo do Catar aprovou uma legislação mais favorável às exigências dos mais elementares direitos humanos.
O contraste entre uma elite que vive a riqueza desmesurada e aparentemente sem intranquilidades de consciência e uma quase escravatura de uma população migrante que apenas tenta sobreviver tem chocado o mundo e tem colocado o Mundial, que amanhã começa, na mira das principais organizações defensoras dos direitos humanos.
A FIFA assusta-se muito com estas manifestações e sobretudo com a avaliação universal sobre a sua avidez financeira e assustou-se tanto que o presidente Infantino cometeu o erro de enviar uma carta às trinta e duas federações participantes apelando para que as suas seleções se limitem a jogar futebol e se concentrem, apenas, na competição, condenando e ameaçando qualquer tipo de mensagem que os jogadores assumissem, quer fosse a favor dos direitos humanos, da igualdade de género ou, mesmo, qualquer referência à guerra na Ucrânia.
Amanhã, porém, a bola começará a rolar nos estádios imponentes do Catar e a paixão que o futebol provoca em todo o mundo haverá de se sobrepor e dominará a atenção universal.
Os mais informados entenderão quase como imperdoável que o jogo e o desporto a tudo se sobreponha na atenção e preocupação de milhões e milhões de pessoas, fazendo-as esquecer do essencial e tornando-as insensíveis ao sofrimento humano. No entanto, como sempre, a vida não pode ser apenas vista a preto e branco.
Se olharmos com atenção a cimeira do clima, cujos resultados continuarão, como sempre, a refletir o interesse daqueles que mais poluem, e se olharmos a desigualdade do comportamento político, mesmo ao nível de questões essenciais de direitos humanos, quando se trata de governos de países ricos e de governos de países pobres, não podemos deixar de admitir que o grande e complexo sistema de equilíbrios mundiais assenta numa base de mentiras e de hipocrisias. As próprias organizações que detêm o exclusivo dos barómetros oficiais dos níveis de qualidade dos países em termos de direitos humanos têm critérios muito questionáveis.
A questão de o desporto se envolver na discussão sobre os direitos humanos é antiga. Eu vivi-a presencialmente nos Jogos Olímpicos de Pequim, em 2008. É um problema cíclico que, na verdade, ninguém está muito interessado em resolver. Deve o desporto impedir que os melhores atletas russos estejam presentes nos Jogos Olímpicos? Deve ser incentivado o boicote desportivo entre os pacotes de sanções dos países ocidentais? Deve o desporto vir em auxílio da defesa mais elementar dos direitos das mulheres no Irão ou no Médio Oriente? Deve o desporto ajudar a passar a mensagem da proteção climática? A mim, que entendo o desporto como uma realidade social integrada e uma atividade que defende, até por definição, uma universalidade igualitária, parece-me que sim. Não se pode pedir ao treinador e ao jogador que deixem de ser humanos.
DENTRO DA ÁREA
CASO EXEMPLAR DE JOÃO FÉLIX
Fui dos que contrariaram a euforia da contratação de João Félix pelo Atlético de Madrid. Batia-se em Portugal um recorde de valor de transferência e, aparentemente, criava-se condições para o crescimento de um novo ídolo de dimensão universal. Eu achava que era o clube errado. O negócio, do ponto de vista do Benfica, admitia, era imperdível, mas temia pelo futuro de João Félix. Para desenvolver as suas características específicas ia precisamente para a pior equipa dos campeonatos dos big five. E continuo a pensar assim. Félix pode valer mais.
FORA DA ÁREA
A GUERRA E A PAZ NA EUROPA
Começa a falar-se de paz. O Papa admite intervir pessoalmente, os Estados Unidos dão sinais de abertura, sobretudo depois da reunião de Biden com Xi Jinping, a Europa anseia por poder recuperar o seu conforto e até Putin repete a ideia de que a Ucrânia é a única irredutível. Zelensky tem razões para se preocupar. Pela primeira vez - na questão do míssil que caiu na Polónia - assumiu diferenças com Biden e já percebeu que andam a congeminar uma solução política que não lhe irá agradar. Mas também sabe que a alternativa é pior.