Deus e o Diabo num jogo de hóquei

OPINIÃO13.07.201904:05

Se parece ser verdade que o Diabo não apareceu por aí, para especial satisfação do nosso primeiro-ministro, António Costa, consta que Deus também não, e que o paraíso, por cá, ainda foi ficando adiado. Vale a pena lembrar esta certamente justificável opção de Deus para não se pensar que os dramáticos comentadores do jogo de hóquei em patins entre Portugal e a Itália tinham, mesmo, conseguido chamar a intervenção divina, que tanto imploraram, para que Portugal acertasse dois penáltis na betesga em que se transforma uma baliza de hóquei, quando o guarda redes se põe de cócoras sobre a linha de golo.

Já, antes, a aflição e a angústia assustavam. Num livre direto a segundos do fim do prolongamento, contra a seleção portuguesa e com o resultado empatado a cinco, pedia-se o milagre Girão, o competente guarda da baliza nacional, e falava-se, sem contenção, do direito a termos uma Fé superior, capaz de vencer a Fé dos outros.

Era, apenas, um jogo de hóquei, uma modalidade que os portugueses, felizmente, continuam a apreciar, mas que o mundo desdenha e o olimpismo ignora. Uma modalidade que se instalou demasiado tempo numa ausência de compromisso com o futuro, com a modernidade, com o seu espaço na frenética realidade multidesportiva universal.

E que não fosse um jogo de hóquei, estivesse em causa a seleção de futebol, um prova de pista, um jogo de pavilhão. Fosse o que fosse na arena desportiva e que tivesse representação portuguesa, nada justifica a ansiedade doentia, a descompensação emocional, a artificial tragédia perante a simples probabilidade de uma derrota. Principalmente quando é da RTP que se trata, porque tem responsabilidades que, apesar de tudo, outros não têm. Responsabilidades maiores de serviço público e, por isso, de exemplo na prestação do comentário desportivo, ou outro.

Não, não se deve exigir um estado de independência laboratorial do jornalista ou do comentador, mas pode e deve-se exigir o comprometimento com a objetividade possível e, essa, começa por ser uma objetividade ética que respeita o todo, mesmo quando reconhece, e deve reconhecer, o mercado para o qual escreve, ou a audiência para a qual fala.

Ver e analisar, essencialmente, a seleção portuguesa, o seu comportamento desportivo, a qualidade competitiva de todos e de cada um dos seus jogadores é uma opção jornalística correta e séria, quando se trata de contar e explicar o jogo a portugueses. Até mesmo sublinhar o desejo do sucesso e envolvermo-nos na emoção partilhada das grandes vitórias.

Não defendo a ideia escolástica do jornalista imune a sentimentos. Nem no desporto, nem em qualquer outro lado mais ou menos luminoso da vida. Acredito mais no jornalista que se emociona, que se empolga, que transmite sentimentos, do que no jornalista aparentemente distante e supostamente discreto perante uma qualquer tragédia global, um espanto universal.

Porém, há que cuidar do que se deixou de cuidar: ensinar jornalismo àqueles que, não sendo jornalistas, pelas suas funções avulsas de comentadores e analistas de jogos e provas desportivas, se confundem com jornalistas e, na prática, se apresentam como tais.

Não basta saber tecnicamente de uma modalidade para a comentar publicamente, quando se trata de um órgão de comunicação social. Até porque corremos, todos, o grave risco de sermos confundidos com o caos ético e deontológico de uma qualquer rede social e de já não haver distinção entre o instinto predador de um adepto descontrolado e a obrigatória sensatez de um comentador responsável.