Demagogia, feita à maneira, é como queijo, numa ratoeira
No site do PAN - Pessoas, Animais, Natureza, pode ler-se, desde a última sexta-feira o seguinte:
«O Grupo Parlamentar do PAN - Pessoas-Animais-Natureza deu hoje entrada no Parlamento de um projeto de lei que visa assegurar o alargamento do regime das incompatibilidades no exercício do cargo de deputado, de modo a impedir que os deputados possam integrar órgãos sociais de entidades envolvidas em competições desportivas profissionais, incluindo as respetivas sociedades acionistas. Isto significa que a ser aprovado este projeto do PAN, contrariamente ao que hoje sucede em alguns casos, os deputados passarão a não poder integrar órgãos sociais de clubes, de federações ou ligas envolvidas em competições desportivas profissionais, como é o caso do Futebol em concreto.»
A seguir, o PAN oferece-nos, pelo discurso do seu líder, André Silva, a explicação para terem proposto a medida acima descrita:
«Atendendo ao crescente descrédito da Assembleia da República (visível nos barómetros do Eurostat) e à necessidade de limitar as excessivas e pouco éticas ligações da política ao futebol, esta proposta pretende assegurar um reforço do compromisso dos deputados com o interesse público e com a credibilização das instituições democráticas, algo que, hoje, já é exigível aos deputados por força do Código de Conduta. Código este que, devido à falta de mecanismos de sanção, é ignorado por alguns.»
Vamos então tentar perceber o que está em causa, e porquê. Para além de inibições lógicas, que existem para não haver contaminação entre setores públicos, os deputados devem continuar livres para pertencerem a tudo menos ao futebol? Só essa presunção fere de morte a legalidade desta proposta altamente sectária. Neste país, as restrições aos direitos, liberdades e garantias têm de revestir caráter geral e abstrato, para evitar estes fatos à medida discriminatórios.
Mas há mais, em relação ao futebol, especificamente: então os deputados, continuando habilitados para outras práticas, deixam de poder fazer parte de órgãos de instituições de utilidade pública, como são os clubes? Sou eu que estou a ver mal ou há aqui uma grande contradição? E no que respeita à Federação Portuguesa de Futebol (FPF) - diga-se já que esta investida do PAN tem a ver com o caso concreto de uma deputada do PS que é candidata ao CD da FPF - sou eu que estou enganado, ou trata-se de uma instituição prestigiada dentro e fora de portas, que detém as mais altas insígnias do Estado, cujos dirigentes foram muito recentemente honrados em Belém, e que acabou de merecer a confiança do Governo como interlocutor preferencial na crise da Covid-19? A FPF, que gere 200 mil praticantes de futebol, de ambos os géneros, e é um dos motores do desenvolvimento desportivo do nosso país. E é tóxica?
Mas o disparate parece não ter fim, neste hino à demagogia do PAN.
Será que «o crescente descrédito da Assembleia da República», de que fala o líder do PAN, se deve «às excessivas e pouco éticas ligações da política ao futebol»? Só por brincadeira pode admitir-se que São Bento dê guarida a raciocínios tão primários. Como só disponho de uma página do jornal A BOLA para esta minha opinião, não vou ter espaço para elencar as razões do descrédito da classe política entre nós, mas garanto que em nenhuma delas entra o futebol. E como não gosto de generalizações, devo assumir que na política, como em tudo mais na vida, são as pessoas que fazem a diferença. E há deputados dedicados e inteligentes, há deputados dedicados e ao mesmo tempo mentecaptos, há-os íntegros e honestos, prontos a defender a coisa pública e há-os também que só querem é ver se conseguem descolar alguma negociata. O sistema, que não ajuda a que a qualidade aumente - que saudades do hemiciclo de outros tempos, em que grandes tribunos terçavam argumentos, ao contrário das poucas andorinhas que hoje fazem a primavera em São Bento -, há de regenerar-se e será por aí que o tal «crescente descrédito» se desvanecerá. E não de forma sectária, enviando o futebol para um gueto, sem cuidar de perceber que este mais não faz do que traduzir a sociedade onde está inserido.
NÃO é a primeira vez que o futebol sofre com estes ataques acéfalos. Por exemplo, a Magistratura convive mal, ciclicamente, com a presença de juízes nos órgãos jurisdicionais das federações desportivas, nomeadamente no futebol. Porquê, não sei. Porque se um juiz serve para julgar nos tribunais, também tem de servir para julgar no desporto. Não é anjo num lado e diabo no outro, é a mesma pessoa, que se não pautar o seu comportamento pelos princípios certos, será pernicioso em ambos os universos. Mas o futebol, de facto, não tem sabido defender-se de ataques que o menorizam, ainda há poucos meses uma sentença judicial desvalorizava o crime de injúrias, por ter sido cometido no contexto de um jogo, em que o f.d.p. deveria ser encarado na desportiva. Como? Há duas leis neste país, uma para as ofensas no futebol e outra para as restantes?
Como na política - e basta um olhar superficial sobre os processos judiciais contra políticos - também no futebol há gente que não presta e que acaba por criar má imagem a um setor de grande mediatização. Mas deverá ser o próprio futebol a rejeitar quem o prejudica (o mesmo devia ser feito na política…), para ficar mais forte. Ao mesmo tempo que deve recusar que políticos demagógicos e populistas ganhem notoriedade à sua custa, avançando com propostas fascizantes, impróprias numa sociedade que pratique o princípio da igualdade.
NADA do que acabei de escrever significa que o futebol não deva empenhar-se em melhorar comportamentos. Todos os problemas que estamos a viver por causa da pandemia devem desaguar em oportunidades de correção de erros e criação de novas vias de desenvolvimento. E neste particular, a urbanidade deve regressar às práticas quotidianas, sobretudo dos dirigentes. De jogadores, treinadores, árbitros, no fundo quem anda mais perto das quatro linhas, haverá, se tanto, queixas residuais, no meio de imensas coisas boas e positivas; alguns dirigentes, acolitados por caixas de ressonância que são a voz do dono, a maior parte das vezes para tentar esconder erros próprios, é que borram a pintura. Mas uma abordagem mais cuidada da indústria do futebol no seu todo, poderá calar quem só sabe instigar ódio, prejudicando o negócio e dando uma má imagem de uma modalidade a que Portugal devia mostrar-se grato pelo muito que tem feito pelo país.
* Refrão da canção Demagogia, de Lena D’Água