Decidir ou não decidir: eis a questão
1 - O presidente da UEFA varia de opinião mais vezes do que o meu papagaio diz «Benfica!», ao longo do dia, independentemente de se jogar ou não, e do resultado. Já ouvi milhentas versões de como podem vir a decorrer a presente época, as competições europeias, as semanas para as selecções nacionais e, claro está, a próxima temporada. Não é que seja fácil tentar encaixar tudo no calendário anual, que indiferente ao coronavírus, se mantém igual, ainda que bissexto em 2020. Bem pelo contrário, tentar conciliar tudo, mesmo o inconciliável, é uma tormenta. Acontece que, salvo melhor opinião, a UEFA não existe para dar palpites, divulgar opiniões de momento, divagar em forma volitiva de simples desejos. Afinal, esta organização, tão poderosa, incisiva e fulminante em sancionar clubes e em encaixar fartos fundos, agora está a ser posta à prova num assunto em que, apesar de todas as dificuldades e imprevisibilidade, se exige uma rota menos ziguezagueante para orientação geral.
Já ouvimos n datas para se poder finalizar a Champions e a Liga Europa (taças que, infelizmente, só indirectamente nos interessam), bem como para o reinício e fecho da temporada. Já lemos a recusa de aceitação de cancelamento de campeonatos (por exemplo, o belga) num dia e, em outro a seguir, a possibilidade de considerar essa situação, desde que tudo seja transparente (?). Já se falou tanto de não haver férias de Verão, como o seu contrário, ou até a sua passagem para um mês mais frio. Quanto ao defeso, também há x cenários, que é como chamam à confusão da não decisão. Também já ouvimos, a nível da FIFA, promessa de montantes de apoio aos clubes de um modo tão genérico, que se resumem a um denso nevoeiro.
2 - E nada ou muito pouco se tem reflectido sobre o necessariamente diferente paradigma, que vai ser o do futebol de alta competição no futuro. Tal como nas diferentes federações que, umas mais, outras menos, andam longe destas preocupações, apenas assestando baterias para a resolução desta época. Este tempo é um teste fundamental para das duas, uma: ou se mudar alguma coisa para que tudo fique na mesma, numa lógica falsamente reformadora; ou se enfrenta radicalmente o futuro que jamais coincidirá com o quadro até agora vivido e se começam a reformar as instituições, as leis, as regras, as sociedades desportivas, as competições, o papel da intermediação, os direitos televisivos e de imagem, a fundamentação e sustentação dos níveis salariais.
Sejamos claros: talvez em 2022, possamos ir todos encher estádios sem a angústia de contágios. E até lá como vai ser? Transformar o futebol numa coisa distante visionada sem ser vivida? Manter as coisas como se a normalidade estivesse assegurada? Considerar os jogadores uma espécie de artistas de circo, que se exibem através de uma tela, onde a emoção será quando muito liofilizada? Considerar os atletas cobaias da retoma, indiferentes a segundas vagas pandémicas (o caso da Alemanha, por exemplo)?
3 - É ridículo o modo como algumas equipas voltaram aos treinos. Ridículo e legalmente discutível se considerarmos que ainda estamos na vigência do estado de emergência. Um desporto associativo treinado em regime de separação total dos plantéis, cada qual nos seus privativos metros quadrados (e, neste pormenor, aprofundando a diferenciação entre os clubes que têm campos e instalações que o permitam, aspecto que não se verifica na maioria dos clubes), tomar o duche em casa, etc. Enfim, um simulacro que pode até parecer bem no marketing mediático, mas que é de todo inconsequente. É que, certamente por um qualquer milagre operado, umas semaninhas depois já podem andar todos ao molho e, outras poucas semanas após, jogarem para as competições, não sei se com máscara (como está a ser falado na Alemanha em cada 15 minutos de jogo!). Aí, os veremos correndo, chocando, saltando, caindo sozinhos ou em grupo, ainda que, hilariantemente, talvez não possam festejar os golos e, nalguns casos, fazer as rodinhas do antes e do depois.
Sinceramente, acho que, na maioria dos países, se está a forçar uma situação para reatar tão breve quanto possível os jogos por disputar. Percebo a pressa, mas não compreendo a precipitação. Os clubes precisam, naturalmente, de voltar a produzir o serviço que prestam à sociedade. Até aqui nada de diferente de outra qualquer actividade económica de produção de bens ou serviços. Claro que a primeira tendência dos poderes políticos, mais do que das autoridades sanitárias, é a de acelerar tanto quanto seja possível a autorização e disponibilização deste bem desportivo e lúdico e com reflexos em muitas outras actividades que vão dos operadores de telecomunicações, a estações de televisão e radio, a publicidade, apostas desportivas e online, etc. Assim o poder reforça a sua perspectiva popular e é aplaudido pela população desejosa de voltar a ter na tela uma catrefada de jogos em modo de salsicharia. No fundo, trata-se de fingir um rápido regresso à normalidade. Acontece que a normalidade já não vai ser o que era, ainda que todos finjam, por agora, que vai. Repisando pontos que já tratei nesta coluna, este frenesim quase planetário leva a um conflito de interesses entre o como acabar a presente época e como deve ser a próxima temporada. Tudo empilhado e encavalitado, onde até agora só tenho visto palpites e suposições. Acresce que, na minha opinião, se está a considerar a eventual pré-época para concluir as competições, como se tratasse de uma pré-época típica do Verão. Creio que as condições de partida para os atletas serão bastante diferentes. Mais tempo de paragem (não menos de 2 meses), uma situação clinica e desportivamente inédita, não existência de um planeamento com conta, peso e medida, como é compreensível, sem jogos amigáveis de preparação e de exigência desportiva, maior dificuldade em percepcionar ou prevenir lesões e consequências para a época seguinte. Depois, imaginemos dois jogos por semana no mês tradicionalmente mais quente e sufocante, como é o de Julho, em que para garantir as transmissões televisivas haverá jogos a horas absolutamente nada recomendáveis. A isto se somam as competições internacionais de selecções e de clubes, o Europeu 2021(perdão, 2020, depois da corajosadecisão da UEFA) e os Jogos Olímpicos do mesmo ano, a definição dos tempos de defeso e de contratações que corre o perigo de se transformar, ainda mais, numa espécie de amiba transaccional, na qual os mais fortes são sempre beneficiados.
4 - Por fim, o absoluto domínio do futebol sobre todos os outros desportos colectivos. Verdadeiramente só se fala do futebol nesta contingência. Parece que o resto não existe ou é desprezível. Basquetebol, hóquei em patins, voleibol, râguebi, andebol, futsal despertam, quanto muito, umas breves notas de rodapé sobre o que lhe está ou pode acontecer. Os atletas estão mais desprotegidos, um qualquer lay-off não suscita interrogações de maior, tudo numa boa visto de fora. E, no entanto, imagino as brutais dificuldades de clubes, não só dos eclécticos e grandes, mas sobretudo dos mais pequenos sem que o seu grito se ouça mediaticamente. Até por uma questão de gratidão, importa considerá-los, pelo muito que, tão abnegadamente, dão à modalidade em que competem e à terra que deles se orgulha. Eu, que gosto do futebol, sinto a falta dele, como do hóquei, do basquetebol, do voleibol. Não tenho uma visão totalitária do futebol e recuso olhar para a actividade desportiva centrado apenas neste desporto. As modalidades bem precisariam de um verdadeiro provedor que defendesse os seus valores e interesses. Há uma Secretaria de Estado do Desporto, que, infelizmente, é uma Secretaria de Estado do Futebol, Similares e Afins. Mais uma vez, tudo reflexo dos interesses económicos que o futebol possibilita e as modalidades não envolvem, tudo medido em tácticas posições de retorno político que aquele garante e estas não permitem. Numa imagem caricatural, as modalidades neste tempo de pandemia estão para o desporto global, como as pessoas velhas estão para o resto da população. Descartadas, descentradas, esquecidas.
P.S. - Mesmo neste tempo de insondáveis desafios, há comentadores e jornais da tribo que continuam obcecados, no compulsivo registo habitual, com o inimigo SLB. Façam o favor de olhar para dentro, se querem ter motivos bastantes para se preocuparem ou dar fartas notícias.