Das coisas com pó

OPINIÃO19.02.201903:05

Recupero hoje um assunto que existe há anos. Há demasiados anos. Há tantos que, vejam bem, até já deixou de ser assunto. Registo de Interesses dos Agentes de Arbitragem. Já ouviram falar?  Em tempos muito criticado, hoje é tema morto e enterrado. Descansa em paz, na prateleira das coisas mais injustas que alguma vez já se fizeram no futebol português. E descansa em paz com o consentimento conformado, acomodado e profundamente desistente de todos os árbitros e dos seus agentes mais diretos.

Mas vamos lá trocar isto por miúdos. Em 1999, a AR aprovou uma norma que, até hoje (e apesar de vários projetos de lei entretanto apresentados e da entrada em vigor do novo Regime Jurídico), mantém-se inalterada. Trata-se de uma ideia brilhante, pensada e criada para agentes de arbitragem do futebol profissional. Diz que eles estão obrigados a entregar declaração anual com os seus rendimentos, além de informação detalhada relativa à compra e venda de carros, imóveis e ações, à subscrição de fundos e constituição/resgate de poupanças, à criação de depósitos a prazo, etc, etc.

Percebam: não se trata de declarar património à Autoridade Tributária. Esta entrega, de tudo o que são opções de vida (financeira) pessoal e familiar, tem de ser feita às instâncias desportivas para eventual consulta, caso existam fortes indícios de ilícito. O não envio dessa informação pode originar suspensão desportiva até cinco anos. Se virmos bem, a medida em si nem é particularmente censurável. Quem não deve não teme e, neste mundo, a transparência é a mais poderosa das armas.

O pormenor maquiavélico é que essa obrigação é aplicável, apenas e só, a elementos da arbitragem profissional. E a mais ninguém. Quer isto dizer que jogadores, treinadores, dirigentes, roupeiros, secretários técnicos, adjuntos, agentes, intermediários, massagistas, médicos, diretores executivos, diretores de campo, administradores, fisioterapeutas, presidentes de clube e de SAD e tantas outras pessoas ligadas ao fenómeno estão dispensadas de o fazer. Nunca o fizeram e não o farão.

Desculpem lá se a digestão de tudo isto continua a criar-me azia, mas... será normal haver uma lei tão discriminatória? As pessoas, os cidadãos, os agentes desportivos... não deviam ser todos iguais, aos olhos de quem legisla? Não há aqui parcialidade direcionada? Não se está aqui a ferir o princípio constitucional da igualdade?

Pior... não é a própria lei que está a semear suspeitas, quando exige que apenas os agentes da arbitragem tenham de dar provas periódicas da sua honestidade? Que mensagem desvirtuada é esta, que a lei incentiva, ano após ano, época após época? Em 2006 foi garantido aos árbitros (eu sei, estava lá) que tudo seria feito para alterar o «rumo injusto do diploma». Treze anos depois... no pasa nada.

É feio que a arbitragem se sujeite a isto, sem se incomodar mais. É feio que existam diplomas parciais, suscetíveis de potenciar a desigualdade e de fomentar a suspeição junto da opinião pública. É feio que toda a gente ache isto normal e que toda a gente se conforme, em silêncio, perante esta gigantesca anormalidade. Ser vencido pelo cansaço é ser vencido da pior maneira possível. Este é um assunto que nunca poderia ter ido para a gaveta.