Dança e Canto
O baile
1 - Acreditava-se nisso. Que o baile não era um simples conjunto de movimentos mais ou menos coordenados entre duas pessoas. Muito longe disso.
Tratava-se não somente de uma relação física, mas de uma relação espiritual. Partilhar passos de dança era como que estar lado a lado numa experiência última e definitiva.
No baile, entre o par de dançarinos, como que existia um processo de osmose em que dois se transformavam num: equilibravam-se as substâncias, as suas concentrações, de modo a que no final não existissem desequilíbrios. Era impossível um casal dançar harmoniosamente, como se diz, sem que existisse entre eles uma circulação interna de materiais não visíveis.
Se um era bastante mais irascível que o outro, no final tal não se notava: um ganhara como que algumas gramas dessa característica, enquanto o outro as perdera.
O baile era assim um método elegante de corrigir os desequilíbrios intelectuais, físicos, morais, económicos, culturais, comportamentais, etc.
A verdade é que quando as pessoas perceberam o efeito dos bailes, estes terminaram. Ninguém queria perder para o outro -para o seu parceiro - aquela concentração de qualidades que julgava ter. (Cada um estava tão contente com pelo menos uma parte de si próprio que pensava que ficaria sempre a perder, qualquer que fosse o seu par). Uns não queriam perder parte da sua inteligência, outros não queriam perder parte da sua musculatura, outros do seu dinheiro, outros da sua cultura.
As danças a dois terminaram. Ficaram só as danças solitárias. Um ou outro dançando ainda, como que a recordar tempos antigos, frente ao espelho.
O Hino
2 - Cinco homens de pátrias diferentes começaram a cantar o seu hino ao mesmo tempo. Eram, pois, cinco canções diferentes, cinco línguas diferentes, cinco ritmos.
Instalou-se uma certa confusão em quem ouvia.
As palavras de uma língua misturavam-se com as palavras de outra, os ritmos das diversas canções aproximavam-se, batiam (como o choque de duas matérias sólidas) e afastavam-se.
Por vezes quase parecia que a palavra de uma Língua sabotava as palavras de outra Língua.
Tratava-se, no fundo, agora estava claro, de uma guerra de vozes, ritmos e vocábulos.
Como se fossem cinco exércitos: eram cinco canções, cinco hinos.
Àquele conflito sonoro foram-se juntando outras canções.
Quem passava e pertencia a outra pátria rapidamente se juntava ao coro. Não seria tolerável o seu hino não estar representado.
Estávamos numa cidade cosmopolita, em poucas horas estavam ali, no passeio de uma das ruas principais, mais de seis dezenas de cantores, cada um cantando o seu hino.
A algazarra e os ruídos misturados eram, para quem passasse distraído, semelhantes aos gritos que vêm do solo depois de um bombardeamento.
Porém, de súbito, todos se calaram. E em poucos segundos a situação modificou-se por completo.
Mudos, agora, aqueles homens poderiam passar por ser elementos da mesma pátria.
A luta, em que cada um tentara impor as suas palavras e o seu ritmo, terminara.
Como a mudez acalma, pensou uma velha mulher que ainda tentava perceber alguma coisa do mundo.
Mas se todos se tinham calado, nenhum deles ficara imóvel.
Cada um estava prestes a tirar do bolso a arma carregada que finalmente, estavam certos, resolveria a disputa.