Da emergência à calamidade!...
Infelizmente, não é por decreto que se descobre a vacina, nem é por decreto que se acaba com o Covid-19, ou seja, não está na mão dos políticos o fim deste maldito vírus. Mas está na mão dos políticos, com o apoio dos cientistas, médicos e investigadores, e do nosso bom senso, passar do estado da emergência ao estado de calamidade, cuja diferença é praticamente uma questão jurídica. Desta passagem de estado de emergência a estado de calamidade destacam-se as actividades desportivas que se podem passar a praticar e o anúncio de que as jornadas finais da Liga e a final da Taça de Portugal poderão ter lugar a partir de 30 de Maio. É sem dúvida uma boa notícia para o futebol, pois este não está habituado a estados de emergência, bem pelo contrário. Na verdade, qualquer que seja a emergência, normalmente o futebol passa por ela como cão em vinha vindimada, sem qualquer preocupação com futuros sombrios, mesmo que previsíveis. Desta vez, porém, a crise é sanitária e, portanto, foram mesmo obrigados a parar e agora vão ser obrigados a pensar. E é bom que pensem porque nada vai ser como dantes, isto é, quando chegar a normalidade, esta normalidade vai ser outra, e esperemos que seja uma melhor normalidade.
No estado de emergência, no entanto, destacou-se um lado positivo do futebol - a solidariedade. E desta, falo com conhecimento da causa!... Mas falando do estado que se inicia na próxima segunda-feira, acho que o futebol está mais habituado aos estados de calamidade, ou melhor, às calamidades, num sentido mais suave ou figurado do termo. Contudo, tenho algum receio que, com as discussões, e não só, que se vão seguir, o futebol não acabe num estado calamitoso! Ainda hoje estou sem perceber por que é que à reunião com o primeiro-ministro, em princípio, iam apenas o Presidente da FPF e os três grandes clubes. Nem o Presidente da Liga, pelos vistos, foi inicialmente convidado, o que eu acho de muito mau gosto e uma desconsideração sem qualificação. Mesmo num ambiente de tragédia, ainda há quem se movimente nos bastidores, para fazer politiquice ordinária, só porque não gosta de Pedro Proença. Neste aspecto, o futebol regressou rapidamente à normalidade, e, embora se tenha emendado a mão, convidando o Presidente da Liga, não deixou de ficar bem patente uma coisa: o Presidente da Liga representa os clubes pequenos e o Porto, Benfica e Sporting são representados pelos respectivos presidentes! Num momento que devia ser de união, o sinal dado é de simbolismo quase criminoso.
É por isso que eu não tenho grandes esperanças de que as coisas corram bem, porque se o pontapé de saída, a meu ver, foi divisionista, o que acontecerá quando forem discutidas as condições em que se vão realizar as jornadas que faltam? Não vão faltar as hipócritas declarações acerca da verdade desportiva, como se neste campeonato que falta terminar e muitos outros que já terminaram, não tivesse vingado, muitas vezes, a mentira! Os clubes portugueses, sejam os chamados grandes, sejam os outros, precisam uns dos outros, porque, ao contrário do que eu pensava, também o futebol europeu e as suas competições irão sofrer alterações, tanto mais quanto o futebol inglês vai sofrer algumas consequências do brexit. Para não falar de grandes problemas que a União Europeia tem de resolver, e que se não resolver, vão redundar em desastre. Se o futebol português continuar com divisões e a discutir as questões importantes em conversas de pátio ou café, aquilo que poderá acontecer a este desporto tão popular é passar de um estado de emergência a um estado de calamidade material e moral.
De sanção a obrigação!
Quer no Regulamento Disciplinar da FPF, quer no Regulamento Disciplinar da Liga, está prevista a sanção da realização de jogos à porta fechada, que consiste na obrigação de um clube realizar um ou mais jogos à porta fechada, isto é, sem a presença de público, que dispute na qualidade de visitado ou considerado como tal.
Não tenho ideia de esta sanção ter sido aplicada por qualquer dos Conselhos de Disciplina daquelas instituições, e tenho quase a certeza de que nenhuma foi executada, pelo menos, recentemente. Tenho, no entanto, uma vaga ideia de que estas sanções já foram aplicadas, ainda que não executadas, por força dos recursos interpostos, por organismos do Estado, designadamente, do IPDJ. Inesperadamente, mas com fundamento, o Governo admite a retoma da Liga Nos a partir a do final do corrente mês, nos termos e condições que forem estabelecidos e determinados por aquelas instituições com o consentimento da Direcção-Geral de Saúde. Não deixou, no entanto, o Governo desde logo de estabelecer a obrigação da realização os jogos à porta fechada.
A partir de 30 de Maio de 2020 podemos ter uma situação pândega em consequência da pandemia: a obrigação da realização de jogos à porta fechada pode resultar da lei ou da aplicação de uma sanção, que o mesmo é dizer, a partir de 30 de Maio os clubes serão todos castigados com a mesma sanção. Não se pense que estou contra a realização dos jogos que faltam à porta fechada, como medida de defesa da nossa saúde. Mas não posso deixar de sentir algum incómodo com a situação de uma obrigação legal coincidir com uma sanção. É que nestas situações existem sempre uns chicos-espertos que se aproveitam destas confusões, tanto mais que os regulamentos disciplinares referidos estabelecem que a sanção (agora obrigação) é executada aos jogos que o sancionado dispute como visitado ou considerado como tal. À cautela seria bom prevenir a situação de alguém querer cumprir uma sanção ao mesmo tempo que uma obrigação legal, para que a pandemia não vire em mais um pandemónio de discussão!...
Apelo
Ontem, num programa televisivo em que se auscultava a opinião dos telespectadores sobre a retoma do futebol, uma das pessoas que interveio, sem mencionar qual o seu clube de preferência, sugeriu que os clubes deviam fazer com as quotas e as gamebox algo semelhante ao que estão a fazer as agências de viagem relativamente às pessoas que não puderam, em face das circunstâncias, usufruir dos serviços contratados, isto é, transformar os pretensos créditos em vouchers. Pensei para comigo que a quota não faria qualquer sentido, porque não há qualquer tipo de comparação entre a relação que tenho com o meu clube enquanto associado e uma agência de viagens com a qual contrato uma prestação de serviços. Quanto à gamebox já a questão se poderá colocar em termos semelhantes, uma vez que a sua aquisição visa a possibilidade de assistir a um determinado número de jogos na época desportiva e de que não posso usufruir porque o Governo determinou que os jogos abrangidos pela gamebox se disputem à porta fechada!
Como todos sabem, não morro de amores pelo actual Conselho Directivo do Sporting Clube de Portugal e, muito menos, pela Administração da SAD. Estes dirigentes são responsáveis por muitas medidas erradas e incorrectas nestes últimos dois anos, e, designadamente, por um clima de divisão, sentido e, na realidade, existente, antes da pandemia rebentar. Não tem, como é óbvio, responsabilidade no Covid-19 que atingiu o mundo em que vivemos!
Como é obvio também, é o clube (ou a SAD), e não os seus dirigentes, que, a haver devolução, teriam de devolver o dinheiro, sob forma de voucher ou qualquer outra. Por isso, reconhecendo com humildade que a situação é muito difícil e que, no fim de tudo isto, o fosso, de que tenho falado, poderá estar ainda mais alargado, e de uma forma definitiva, apelo a todos os sportinguistas para que, num gesto de solidariedade para com o clube, que é de todos nós, se esqueçam, agora e num futuro próximo, do que não pudemos usufruir por causa do maldito Covid-19. Não resolve os problemas, mas não devemos ser nós a criar mais um. E as contas fazem-se mais tarde...
Apelo também a que aproveitemos esta emergência para mudar de vida, de uma forma sustentada e sustentável. Que a emergência nos obrigue a encontrar o rumo que nos falta, e obrigue os dirigentes a falar com sinceridade, com verdade e transparência. Em Portugal, ao estado de emergência sucedeu o estado de calamidade para, em simultâneo, cuidar da doença e não matar a economia. No meu clube, se não soubermos aproveitar este estado de emergência para lançar as bases de um projecto com principio, meio e fim, então a calamidade poder-se -á transformar numa tragédia!