Da bipolaridade

OPINIÃO08.03.202206:00

As pessoas que estão no futebol têm de perceber que não são um fim, mas apenas um meio

Ofutebol português tem dado sinais de alguma bipolaridade, o que não é saudável mas, convenhamos, não deixa de ser expectável se tivermos em conta as circunstâncias em que está inserido. Para lá de ser protagonizado por pessoas - já de si demasiado intermitentes na dicotomia razão/emoção - o jogo é apenas parte menor de um contexto maior, o social. O que se faz, lá dentro ou em torno das quatro linhas, será sempre uma extensão do que acontece cá fora, na sociedade, na nossa realidade quotidiana.
Dois exemplos pragmáticos: a pandemia e o conflito na Ucrânia. Ambos são temas que dominam a atualidade. Sobre um e outro o que não faltam são opiniões diametralmente opostas. Por um lado, há quem continue a chamar gripezinha a um vírus que matou milhões de pessoas em dois anos, como há quem continue a andar de máscara, sozinho, dentro do seu próprio carro. Por outro lado, há quem chame assassino/psicopata a Vladimir Putin, como há quem diga que o cavalheiro foi obrigado a invadir a Ucrânia porque as forças diabólicos do Ocidente (NATO, ONU, UE, EUA, Pai Natal e Tio Patinhas) assim o impuseram.
Mesmo quando, num e noutro casos, todas as evidências são esmagadoramente avassaladoras, haverá sempre gente assim, que pensa diferente, que pensa o oposto, que sente ao contrário.
Claro que num cenário social assim, tão díspar, seria impossível pedir ao futebol que fosse diferente. De facto, não é.
Reparem: na mesma semana em que deram provas de uma elogiável solidariedade (ao criarem campanhas de angariação para as vítimas da guerra), algumas equipas continuaram, internamente, a atacar os seus rivais desportivos, através de uma opção comunicacional que não serve nem aos próprios, nem à competição. Que não serve a ninguém. Entre tantas formas positivas de promover a sua instituição, a opção (não de todos, mas de alguns que até estão bem sinalizados) mantém-se bélica, com discurso corrosivo, que fomenta o ódio, a divisão e a suspeição. Perceberam onde mora aqui a bipolaridade? Ação humanitária por um lado, postura de guerrilha por outro. Paz para a Ucrânia, guerra para o adversário. Digam-me... é ou não é surreal?
Mas os adeptos não ficam atrás neste tipo de transtorno: ao mesmo tempo que uns acenam com bandeiras azuis e amarelas, manifestando apoio incondicional ao povo ucraniano, outros - sentados ali ao lado - entretêm-se a pôr em perigo a integridade física de jogadores e árbitros, atirando petardos e tochas acesas para dentro do relvado. O que aconteceu em Portimão e, na semana anterior, em Alvalade, é algo que - não sendo virgem e que já vimos em muitos outros palcos -, prejudica não só a imagem do próprio clube, como a de todos os seus sócios e apoiantes. É algo que prejudica ainda a imagem do jogo e de toda a competição. E aqui o caso é particularmente preocupante porque já morreram pessoas devido ao arremesso de material perigoso e convém que nunca o esqueçamos.
Se controlar meia dúzia de delinquentes não é tarefa fácil (embora continue sem perceber bem como é que eles conseguem transportar/esconder aquele tipo de explosivos), exigir mais ética e elevação no discurso parece ser.
Se todos se comprometerem a atacar menos o vizinho do lado, numa espécie de pacto de honra, a coisa dava-se ou não?
As pessoas que estão no futebol têm que perceber que não são um fim, mas apenas um meio. Um meio ao serviço de instituições históricas, que existem há muitos anos e que vão continuar a existir quando elas saírem de lá. Tudo o que fazem define a casa que escolheram valorizar. E a palavra-chave aqui é mesmo essa. Valorizar.