Criatividade só para alguns
QUANDO Laureano Ruiz introduziu os meínhos enquanto treinador das camadas jovens do Barcelona nos anos 70 do século passado não imaginava a influência que os rondos (como lhe chamam os espanhóis) iriam ter na identidade do clube. Por acreditar que aquele exercício tinha quase tudo o que se pede a um jogo de futebol, colocou-o em prática na breve passagem como técnico interino do Barça, onde jogava Johan Cruyff. O holandês gostou e, anos mais tarde, aperfeiçoou-o na lógica da revolução que levou a cabo no Barça do passe, posse, movimento, alegria. Pep Guardiola, o mais fiel descendente desse ideal, elevou a criação original de Ruiz para trabalhar as transições defensivas, um dos aspetos mais fortes do seu Barcelona (o de Xavi, Iniesta e Messi), aquele que foi provavelmente a melhor equipa da história do futebol. O meínho é apenas um exercício, mas está tanto ali dentro. E pensar que tudo começou com um rasgo de criatividade.
PRIMEIRO a monitorização à distância dos exercícios individuais; depois, os treinos em relva mas com uma separação entre indivíduos como se estivessem em lados opostos do paralelo 38; posteriormente, defesas a treinar com defesas sem contacto com médios ou avançados; finalmente, treinos de conjunto sem possibilidade de fazer jogos antes de entrar em competição. Esta paragem e retoma dos trabalhos deve ser um dos maiores desafios para os treinadores, mesmo os mais experientes. Porque estas condicionantes não vêm nos livros nem em cursos, acredito que nas primeiras duas a três jornadas (quando a intensidade ainda for a de um início de temporada mas sem uma pré-época decente) poderá fazer a diferença aqueles que tiveram mais capacidade de inovação e criatividade para contornar tantas barreiras, conseguindo simular situações de jogo em circunstâncias impensáveis. Tal como admitiu Carlos Carvalhal numa recente entrevista ao The Guardian, andam todos a «puxar pela cabeça».
Só mais tarde iremos perceber se algo de novo foi criado no ano de 2020. Em metodologia de trabalho mas também na forma de comunicar entre um líder e o seu grupo. Diz-se tantas vezes que no futebol já tudo foi inventado mas este postulado é apenas meia verdade. Vejo hoje jogadas e movimentações que não via há 10 anos, a tecnologia entrou definitivamente no jogo e agora (pelo menos durante um ano) os técnicos já não poderão dizer «se pudesse, tirava meia equipa» - agora já o podem, pelo menos nos campeonatos onde as cinco substituições são permitidas.
Quando a cotovelada deixa de ter um tom pejorativo e passa a ser um sinal de celebração, quando os futebolistas conseguem conter-se no festejo de um golo como se estivessem em jaulas virtuais, quando a ausência do público não impede o desejo de jogar e ganhar, estamos, sim, num outro futebol. Sem essência, mas profissional, assético e mais sério. Não é o ideal mas é o que temos. E não é pouco.
JÁ fora da relva continua tudo igual. Em vez de inovação há lamúrias e birras, no lugar da criatividade entra o jogo de bastidores. O verdadeiro salero, na verdade, está e estará nos gabinetes. Como sempre. Aí há emoção em barda. Com ou sem videochamadas, com ou sem distanciamento social. Benfica a recusar jogar no Dragão com casa emprestada de outros clubes, Marítimo que ameaçou com impugnação da prova se não jogasse na Madeira, tendo-lhe sido concedido o pedido e como consequência a necessidade de os árbitros viajarem no mesmo charter dos clubes visitantes. Ora, com o Benfica a visitar o Funchal na jornada 29 estamos todos a ver onde isto irá parar, certo? Se a este caldo cultural juntarmos a inabilidade do presidente da Liga Portugal, Pedro Proença, em vários processos, que o deixa com pouca margem para continuar no cargo quando a poeira assentar, temos, portanto, o velhinho futebol. Com comportamentos de estadista houve muito menos do que se exigia nesta fase em que tudo foi questionado, até a existência da própria modalidade. Dizem que este coronavírus poderá tornar-se endémico. Mas não será o único.