Conto de Natal

OPINIÃO04.01.202003:00

ACONTECEU-ME no barco para Almada, na noite de 1 de janeiro, depois do trabalho. Sentei-me diante de um senhor, 70 anos, farta barba branca, corta-vento vermelho. Saudei-o com inclinação de cabeça e não resisti a provocá-lo:

-  Agora que passou o Natal isto anda mais calmo para si, não?

Preparado para a abordagem, até agradado por eu não ser mais um passageiro a olhar para o telemóvel durante a travessia do Tejo, respondeu-me:  
- Mas tenho de manter a barba todo o ano, ou chega dezembro e não está suficientemente grande para arranjar bom trabalho nos centros comerciais e nas aldeias de Natal. Dá chatice cuidar desta barba. E só uso produtos naturais, para ficar fofinha. Quer mexer-lhe?


Perguntou-me o que fazia eu, disse-lhe que era jornalista e olhou-me como se sofrêssemos do mesmo mal, o do exercício de profissão na qual as pessoas vão acreditando menos. Parecia que o Pai Natal era eu e tive de discordar:

-  A minha profissão não está em risco.
- Nem a minha, ora essa!
- O meu trabalho é sobre coisas que existem.
- E o meu? Não estou aqui? Os miúdos que acreditam em mim não existem? Mas tem razão, estava só a chateá-lo... Eu acredito nos jornalistas, referia-me só às coisas que vamos lendo por aí e que tantas vezes não sabemos se são verdade ou mentira, sabe?
- Claro que sei.
- Todas as profissões têm chatices, não? Eu tenho de manter esta barba todo o ano, como lhe disse, o que no verão é chato. Mas no Natal sou dos poucos com barba a sério. A diferença sabe qual é? O sorriso, porque quando eu sorrio tenho expressões na cara, enquanto os pais natais de barbas postiças não se podem rir, porque a boca deles desaparece e toda a gente percebe que são mentira.


(Caros leitores, feliz 2020).