Clubes vistos de Pago Pago

OPINIÃO22.09.202004:00

1 Para quem não sabe, Pago Pago é a capital da Samoa Americana, na Oceânia. Tenho lá um amigo que está agora a passar férias no atol de Funafuti, onde, com tempo para tudo, aproveitou para se pôr a par do que ultimamente foi noticiado sobre o nosso futebol. Na maré baixa do atol, mandou-me um extenso email com a sua apreciação. Aqui o transcrevo:

«Vi que o teu clube Benfica, depois do jogo em Salónica, pode estar agora numa situação financeira delicadíssima, senão mesmo calamitosa, ao contrário dos rivais que, segundo deduzi, passam por uma fase financeiramente resplandecente. Olha, constatei, igualmente, que o Benfica terá um inusitado passivo financeiro de curto prazo de 97 milhões, sobre o qual tanto se vem perorando, mas estranhei nada ouvir sobre os encargos dos rivais, ao que li, muito mais elevados. Estarei enganado? Aqui no atol, diz-se que o Benfica teve o desplante de pagar as obrigações vencidas na altura certa, prática que, em hora pandémica e não pandémica, os seus rivais sábia e oportunamente não cumpriram. Também li e ouvi, em coutadas jornalísticas e opinativas, que o teu Benfica tem agora o descaramento de possuir uma conta corrente caucionada de 30 milhões num tal banco que se chama Novo. Ouve lá, não foi o presidente deste Banco que disse no vosso parlamento - e cito de cor - que o Benfica chegou a dever 202 milhões e teve um comportamento exemplar? A propósito, nunca percebi por que razão o teu clube, desprevenidamente, não tem essa coisa esquisita de VMOC (nota minha: valores mobiliários obrigatoriamente convertíveis) e não poderá, como tal, beneficiar de elevados perdões concretizados da banca, julgo que à volta de uma centena de milhões!»

 Continuando a transcrição:
«Explica-me uma coisa, porque eu, como compreenderás, neste fim do mundo  não estou muito a par do valor dos craques mundiais: porque é que durante um mês só se falou de o teu clube andar entretido com um jogador mediano - um tal Cavani (nota minha: não confundir com este meu amigo samoano que se chama Kalani) - e pouco se ter dado conta (aqui no atol) de os rivais do Norte andarem também há um mês para contratar o craque mundial Toni Martínez, tudo por causa de uma garantia bancária ou de um não entendimento sobre o modo de pagar um valor tão excepcionalmente elevado. Ele há cada coisa tão incoerente, pelo menos se observada a 16 700 km de distância! Mas tenho mais estupefacções nesta semana em que, para matar o torpor, me pus a par do vosso futebol de clubes. Então o Benfica que, segundo me disseste, nunca deixou de pagar integralmente os salários nos meses de paragem da pandemia, é que é criticado e os rivais quase louvados pelas práticas do que chamaste lay-off, da redução salarial temporária, ou até do atraso nos pagamentos aos atletas? Olha, fiquei surpreendido quando ontem, antes de adormecer, li que o teu Benfica já está no vermelho do fair play financeiro da UEFA antes de o estar, enquanto o rival já está praticamente fora, antes de o conseguir. Tens de me escrever a explicar tantos enigmas. A «tragédia grega» do teu Benfica (fixei este disfemismo tablóide) não foi tal como o pequeno percalço (agora sou eu com um eufemismo) do rival frente ao potentado russo do Krasnodar, neste caso em duas mãos? Sabes o que aqui chegou rapidamente e não gostei? Um vídeo de um macaco (mas vocês têm macacos fora do Zoo?) a festejar a derrota do Benfica. Até aí nada de novidade até porque é prática comum na parte de esgoto de redes sociais. O que me deixou perplexo foi o facto de os tais tablóides fazerem disso notícia e exibirem a macacada. Eh, pá, em Portugal é tudo tão fulminante que também soube que houve jornalistas que perguntaram ao Jesus se ele não estava arrependido de ter voltado. Confesso que, sendo cristão, fiquei baralhado, mas depressa entendi que era o vosso treinador. Logo de seguida e por associação religiosa, a minha cabeça passou de Jesus para Conceição e lembrei-me (ainda tenho boa memória) que os mesmíssimos jornalistas não fizeram tal pergunta ao técnico que, no ano passado, foi eliminado na mesma fase da Champions e até perdeu o primeiro jogo do Campeonato. Tenho uma outra dúvida, continuando a falar do teu Jesus. Porque é que o Benfica contratou um treinador caro, embora muito sabedor e experiente, quando tinha à mão um técnico jovem vindo do Casa Pia e de um curto tirocínio em Braga por apenas 14 milhões de entrada? Sei que logo me responderás, no teu jeito brincalhão, que a diferença está entre a minha cidade de Pago Pago e a tentação de Pago Não Pago Não ou Pago Não Pago Depois.

E quanto às comissões (não as de honra) pagas pelo teu clube e que são sempre objecto de longos debates televisivos por causa dos 10% (cá para mim, acima do que deveria ser…), por que razão pouco se falou de uns tais 25% pago por um rival.  A propósito, nem consigo imaginar o que já se teria dito por aqui se um filho de um qualquer presidente do clubezeco de Pago Pago fosse o intermediário numa transferência.

Para terminar, diz-me só mais uma coisa: O Benfica ganhou 5 dos últimos 7 campeonatos nacionais, contra dois do Porto, ou foi ao invés? É que já estou baralhado e atafulhado com tanta estatística! E pronto, é o que me apraz dizer entre o atol e o atoleiro separados por 12 horas de diferença.»
O meu amigo ainda foi a tempo de escrever um «em tempo». Transcrevo-o: «ET - o tal Martínez jogou contra o teu clube quando se diz que, logo a seguir, vai para o clube rival? Não percebo. Isso é normal? Falo disto porque ainda me lembro do que me disseste de casos (ou não casos) tão badalados de que acusaram o teu clube. Será que o respeitinho é diferente conforme os clubes? Não será muita cerimónia, cuidado e desvelo de parte significativa da informação e opinião mediáticas sobre esse rival? E porquê?»

2 Percebo a dificuldade do meu amigo em tentar racionalizar os acontecimentos. Até já lhe mandei uma curta mensagem a dizer que estamos na rota, não da seda, mas na rota mediática do exceda e conceda, mais concretamente do Benfica (do lado do exceda) e do Porto e Sporting (do lado do conceda).
Vou responder-lhe detalhadamente nos próximos dias. Com factos. E sem a pretensão fantasiosa de sugerir que tudo vai bem na Luz. Há coisas que, objectivamente, me preocupam e me incomodam neste casamento de coração com o meu clube. E que aqui tenho várias vezes referido. Neste assunto ou em qualquer outro na vida, procuro, com liberdade e sem dependências sejam de que natureza forem, evitar maniqueísmos perversos de filmes a preto-e-branco, em que ou tudo está bem e recomenda-se, ou tudo vai mal e se precipita. Nunca fui de me habituar a proselitismos e autoritarismos que, em vez de nos esclarecerem e iluminarem, nos atrofiam na leitura e interpretação do que se passa.

Depois da eliminação em Salónica (em duas mãos outro galo cantaria), peço desculpa de transcrever o que a semana passada disse nesta coluna: «Preocupa-me sobretudo a  dependência muito grande da Champions e da carreira europeia face à folha salarial do plantel, a vulnerabilidade de remédios de curto prazo para uma hipotética situação de deterioração operacional (…) e a necessidade de conjugar o risco que sempre existe em transacções de passes com a oportunidade dos mercados e preços compatíveis não só no momento da decisão, mas acautelando os anos seguintes de amortização dos custos.» Bastou um jogo para evidenciar as minhas apreensões.