Clamor contra a coisa
A Superliga da JP Morgan parece inspirada na vida e obra do monarca francês Louis XIV (rei Sol), que tinha uma conceção bastante egocêntrica da vida e de tudo o que o rodeava
IMPRESSIONANTE o clamor geral contra a criação, pelo banco de investimento americano JP Morgan e doze clubes europeus endinheirados, de uma competição fechada que, a ir avante, destruiria o significado da Champions, dos campeonatos nacionais e, enfim, toda a essência do futebol europeu. Governos, FIFA, UEFA, federações nacionais, clubes, treinadores, futebolistas, adeptos e jornais de referência uniram-se a uma só voz, ou quase, contra o projeto dos dirty dozen, como lhes chamou, não chamando, Aleksander Ceferin, o presidente da UEFA (o tal que, no mínimo, fechou os olhos à escandalosa concorrência desleal há muito promovida pelos potentados financeiros donos do PSG e Man. City). A Superliga desenhada pelos especialistas da JP Morgan representa um projeto financeiramente muito atraente para os implicados - entre os quais se encontram clubes em estado de rutura financeira e não só por causa da pandemia, atenção… - mas que subverte completamente todas a regras da competição (pelo menos como os europeus a entendem), fazendo tábua rasa, por exemplo, daquilo que é a sua essência: o mérito desportivo.
Na Superliga da JP Morgan competiriam, portanto, um punhado de clubes autoproclamados de elite [leia-se: com capacidade de gerarem audiências e receitas significativas], pouco importando outros aspetos relevantes como o merecimento, o currículo e, claro!, a posição nas classificações e nos rankings que decidem o acesso ao pote das competições abertas. Competiriam em sistema fechado como os clubs londrinos das épocas vitoriana e eduardiana (pobres e remediados não entram), atribuindo-se os fundadores, pasme-se!, o direito de não serem despromovidos seja qual for o desempenho. Uma espécie de cartão gold permanente, do mais democrático que se pode imaginar. Esta parte foi certamente inspirada na vida e obra do monarca francês Louis Dieudonée XIV, dito Rei Sol, que tinha uma conceção bastante egocêntrica da vida e de tudo o que o rodeava.
É um facto que entre os parceiros da JP Morgan se encontra a nata do futebol europeu, com o Real Madrid do empresário Florentino Pérez à cabeça - o Milan e a Juventus, o Liverpool e o Barcelona também estão lá. Mas a parte dos desempenhos, do currículo, dos títulos, enfim, tudo aquilo que faz e estabelece as hierarquias no desporto, foi, pelo que se percebe, abordada um bocadinho à americana - não importa o que ganhaste, importa é o que nos podes ajudar a ganhar. Só assim se explica que entre os doze fundadores desta coisa se encontrem quatro clubes - reparem: um terço! - sem historial relevante e nenhuma vitória na Taça/Liga dos Campeões Europeu (Arsenal, Tottenham, Manchester City e Atlético Madrid) e que três dos dez clubes com mais títulos internacionais (Bayern: 14; Ajax: 11; FC Porto: 7) primem pela ausência na putativa elite. Isto faz algum sentido?
«Greed is good» (a ganância é boa), dizia o implacável corporate raider Gordon Gekko (interpretado por Michael Douglas) em Wall Street, o filme de Oliver Stone que sintetizou a loucura mercantilista dos anos oitenta. A Superliga JP Morgan parece decalcada do capitalismo selvagem que fez e desfez fortunas nessa época: completamente centrada nos ganhos e nos lucros de um banco hiper poderoso e de umas quantas empresas gulosas da área do futebol; completamente indiferente à sorte dos outros, ao dever mais básico de solidariedade com os excluídos, com os mais fracos, com os que não têm conta bancária ou fiador credível para se juntarem ao clube dos privilegiados.
Isto numa altura em que o mundo sofre uma crise sem paralelo por causa de uma pandemia. Isto numa altura em que milhões de pessoas sofrem porque perderam familiares e amigos, porque perderam o emprego, porque não têm dinheiro, porque perderam a esperança. Isto numa altura em que quase todos os clubes do mundo estão a braços com crises muito graves de liquidez. Convenhamos: a maneira como esta negociata foi apresentada e o montante das verbas em jogo para os Florentinos, os Agnellis, os Glazers e os Henrys desta vida são simplesmente insultuosos para o adepto comum - aquele que sustenta o jogo.
Pela parte que me toca, tenho muita pena que um clube com a história, a tradição e o perfil social do Liverpool tenha embarcado numa coisa destas (shame on you, John Henry). Mas fiquei reconfortado com a reação generalizada dos adeptos, dos jogadores (bravo pela coragem, Bruno Fernandes!) e dos maiores jormais desportivos europeus, como se vê na ilustração ao lado.
O futebol que nos anima não é e$te.
PS - Não podia estar mais de acordo com a tomada de posição, ontem, do Vítor Serpa no seu editorial «Os pobres que paguem a crise». Muito bom!
MOURINHO, MAIS UMA VEZ
MAIS um despedimento, mais uma indemnização faraónica. O timing é que é difícil de entender: em vésperas de uma final com o City de Pep Guardiola, que Mourinho conhece como ninguém (já o venceu por sete vezes). Depois de Roman Abramovich (Chelsea) e da familia Glazer (Man. United), foi a vez de Daniel Levy, chairman do Tottenham, passar a José Mourinho um cheque com um valor que 99,99% das pessoas não ganham ao fim de uma vida inteira de trabalho. Nada contra: é da lei e é assim que deve ser. No caso de Mourinho, é o terceiro revés deste tipo desde a saída do Real Madrid, há quase oito anos, e a confirmação de que este terceiro período (2013-2021) é o pior da sua brilhante carreira, depois do início promissor no Benfica e no Leiria (2000 e 2001) e dos esplendorosos anos de ouro (2002-2013) no FC Porto, Chelsea, Inter e Real Madrid, onde o special ganhou 20 dos 25 títulos (duas Champions incluídas) que constam no seu palmarés. Pouco importam as narrativas que se vão tecer (umas mais simpáticas, outras menos) para explicar o que falhou na relação entre Mourinho e os spurs. O que conta é o amanhã. As perguntas são óbvias. Para onde vai Mourinho? Haverá um clube de topo que aposte nele? Qual? Ou será uma Seleção? O regresso a Portugal é uma hipótese plausível?...
Aguardemos. Por mim, como admirador de José Mourinho (como Figo, Federer, Ronaldo e Messi, tenho acompanhado a sua carreira literalmente jogo a jogo) apenas desejo que consiga reencontrar o espírito, o mojo e as motivações de 2002-2013. Ou seja. Tudo aquilo que fez dele, durante uma década, o melhor treinador do mundo.