Bruno Lage entende e explica o jogo
Durante muitos anos, os treinadores portugueses tiveram a convicção de que o treino tinha segredos que não se deviam revelar. Tratava-se, muitas vezes, de um conhecimento empírico, feito de anos e anos de tarimba e de observação dos mestres. Os homens da bola aprendiam não apenas por ver como se fazia, mas também por intuição e por experiência própria. O treino, para eles, tinha sempre um género de assinatura de autor e, como se fosse uma receita de cozinha, que a avó tinha ensinado, escondiam o essencial do método na gaveta.
Vieram treinadores estrangeiros, alguns da então designada Europa de leste, principalmente, jugoslavos, como, por esses anos, era conhecido todo esse conjunto heterogéneo de povos, que envolvia croatas, sérvios, montenegrinos, bósnios, e que o general Tito unificou em torno de um pretenso socialismo mais humanizado, e abriram as portas e as janelas do conhecimento do treino e do jogo. Não era raro, os jornalistas da área do desporto, se sentarem à mesa com homens como Pavic ou Ivic e ouvirem profundas reflexões sobre o futebol e a sua complexidade. Aprendia-se muito e respeitava-se muito o conhecimento. Aprendíamos que nem o treino era uma ciência oculta, nem o conhecimento, quando sólido e coerente, devia ser fechado a sete chaves. Pelo contrário. A discussão do jogo, dos métodos de treino, das diversidades táticas em função de adversários e das diferentes culturas de cada país, tornava-se enriquecedora e fortalecia o conhecimento.
Dei por mim a pensar nesta realidade, que eu próprio vivi nos meus tempos de jovem jornalista, ao ouvir a última conferência de imprensa de Bruno Lage, talvez uma hora depois de ter terminado o Benfica-Galatasaray. De repente, a surpresa de um jovem, sem complexos nem preconceitos, frente a uma plateia de jornalistas, a explicar o jogo, a razão das suas ações relacionadas com as mudanças que operou na equipa, a explicar o que fez, por que fez e a desmistificar a ideia de que há uma ciência de classe que se omite ao mundo exterior, quanto mais não seja, para que as pessoas pensem que só está ao alcance de alguns eleitos e que é inacessível ao comum dos mortais.
Bruno Lage falava com a convicção e a coerência de quem está muito confortável com o que faz e de quem está muito seguro com o que sabe. Por isso, em vez de uma conferência de imprensa de lugares comuns, em que muitos treinadores se especializaram; em vez de um discurso redondo e desinteressante, vazio de conteúdo, oco de ideias, feito de uma insustentável leveza do saber, Bruno Lage surgiu como uma aragem fresca, que valoriza o contacto com os jornalistas e, por via destes, o contacto com os adeptos de futebol.
Nesta conferência de imprensa, o treinador do Benfica não falou, apenas, para o universo dos adeptos do seu clube. O seu invulgar discurso interessaria a qualquer adepto do futebol, fosse ele de que clube fosse. E isso é, de facto, uma mais-valia para o jogo e para o mundo, apesar de tudo inteligente, que ainda existe e resiste nas franjas de um universo que se deleita com uns quantos bandos de feios, porcos e maus.
Bruno Lage vem, pois, juntar-se a uma nova vaga de treinadores sem teias de aranha na cabeça, quando chega a hora de comunicar para o exterior (admito que Ricardo Lemos tenha parte importante nesta boa surpresa) e na qual também se deve incluir, apesar da diferença de estilo, o treinador do FC Porto, Sérgio Conceição.
O futebol português deve estar-lhes grato por isso. Tal como os adeptos que verdadeiramente gostam do jogo. Tal como os jornalistas que percebem, aqui, o motivante desafio da exigência.