Bons acasos e boas tradições
O intervalo entre as competições nacionais é a oportunidade para falar menos na imposição da actualidade e ter tempo e espaço para digressões por outros horizontes.
Há poucos meses estive na capital da Eslovénia, a belíssima cidade de Ljubljana, a menos eslava e a mais austríaca dos antigos Estados da ex-Jugoslávia.
Já lá tinha estado em 1996. Constatei agora que, mantendo o seu perfil de cidade «humanamente mais gerível» e de uma urbe que sabe manter o seu património arquitectónico, evoluiu muito depois da inclusão na União Europeia. Para mim, uma cidade onde me sinto bem, sem os atropelos de um turismo demasiadamente invasivo, mas com a nobreza de uma cidade que sabe acolher.
Um acaso feliz fez-me ligar a serena Ljubljana ao meu Benfica, muito pouco tempo antes da Reconquista do título nacional. Tinha acabado de estacionar numa via junto do rio Ljubljanica que atravessa a capital eslovena, quando um dos meus genros e a minha neta Joana, ambos indefectíveis benfiquistas, ao olhar para a vedação que nos separava do rio, viram, imediatamente, algo de surpreendente. Tratava-se de um cromo de colecção de jogadores, perfeitamente conservado, de um jogador do Benfica. Só isso já era para nós uma agradável coincidência, logo no momento em que iniciávamos a visita à cidade. Mas era mais do que isso: tratava-se de uma relíquia a mais de 2000 quilómetros do Estádio da Luz. O jogador era António Simões, campeão europeu e um dos mais lídimos representantes da glória do clube. Fiquei emocionado. Uma ilustração de outros e saudosos tempos, ali colada tão longe, à nossa beira! Não sei há quanto tempo lá foi fixada, mas o seu estado era impecável, não tendo sido objecto de nenhum assédio destrutivo. Por momentos, lembrei-me do que, por cá, se constata virulentamente a este nível, em paredes, muros e até instalações de clubes. Ali, aproveitei para contar às minhas netas o que é o Benfica dos anos 60 e 70 e lembrei os títulos nacionais e europeus alcançados. E dizer-lhes que, nesses tempos, os jogadores não passavam apenas pelos clubes, antes lá ficavam grande parte do seu trajecto profissional. Este singular cromo de caderneta (com a curiosidade de ter escrito «made of Benfica»!...) também simboliza a perenidade feita memória e exprime a mais profunda relação de pertença: do atleta ao clube e do adepto à memória do aleta no clube. Por vezes, dou comigo a dizer sem pestanejar as equipas do Benfica (e até de outros clubes) de anos do século passado. Agora, se tiver de dizer a equipa de há meia dúzia de anos, tenho muito mais dificuldades e recorro aos Cadernos de A BOLA ou à Internet. Bem sei que hoje a ideia da e das mudanças está inculcada na nova maneira de olhar para o futebol e para o mundo em geral. Como já profetizara Luís de Camões,
Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,
Muda-se o ser, muda-se
a confiança:
Toda o mundo é composto
de mudança,
Tomando sempre novas
qualidades
Sei ver o lado bem positivo desta profunda alteração no reino do futebol. Mas também reconheço o lado mais descartável, efémero, fugaz, ilusório, às vezes quase virtual, em que cada dia, cada semana, cada mês são engolidos na ânsia de se viver apenas o presente. Neste frenesim de uma nova escala dos tempos, a memória dentro das pessoas perdeu relevância ou, pelo menos, tornou-se mais frágil e solúvel. E, todavia, a memória é a presença na ausência, e passado é a memória da presença, que, por vezes, nos troca as voltas. Assim é que há factos recentes que nos parecem perdidos no infinito do tempo e acontecimentos e vivências de há muitos anos que estão bem perto de nós, no tempo de agora.
O passeio por Ljubljana prosseguiu. Uns minutos mais tarde do encontro com Simões, deparámos com outro cromo coleccionado, mais moderno na forma, e menos antigo no jogador que lá estava representado: Diamantino Miranda, em pose dos anos 80. Outro jogador de quem tenho saudades e que também me ofereceu momentos de magia. Numa cidade que, ao que sei, tem um clube modesto e quase ignoto no mapa do futebol europeu, o Olimpija (sendo que o mais conhecido, o Maribor, é de outra parte da Eslovénia), havia fragrância e alma benfiquistas. As fotografias que aqui partilho atestam a razão por que se já gostava desta cidade, a passei a considerar uma cidade com Luz e papoilas saltitantes.
Em suma: naquele dia, juntei tudo: a minha família, uma terra em que me sinto bem, bom tempo, frondosas e bem tratadas árvores, a exaltação memorial e a universalidade intemporal do meu clube, a confluência de gerações de Benfica e de benfiquistas, a redistribuição saborosa com as minhas netas de momentos gloriosos da história do clube. Por isso, obrigado a António Simões e a Diamantino Miranda, por via de cromos que continuam imaculados. Ah, não escondo que isto se passou numa segunda-feira, o dia seguinte a mais uma vitória do SLB rumo ao depois alcançado 37!
A tradição no seu melhor
Sempre gostei de acompanhar o Tour. Desde os tempos de Jacques Anquetil até agora. Recordo, com entusiasmo, o então quase impensável 10.º lugar de Alves Barbosa em 1956 e os notáveis feitos de Joaquim Agostinho. Na altura, socorria-me das muitas páginas que A BOLA dedicava ao Tour. As míticas montanhas dos Alpes e Pirenéus eram mais produto da minha imaginação que da imagem visionada, que ainda não chegava cá..
É certamente um dos mais belos espectáculos aquele que nos é proporcionado pelas transmissões televisivas de La Grande Boucle. Superiormente realizadas, com pormenores deliciosos sobre a vivência no pelotão, com imagens soberbas sobre a heterogeneidade de uma natureza pródiga em beleza e do encontro com a história e o património gaulês. E com excelentes comentadores portugueses.
Vou acompanhar com prazer esta 106.ª edição do Tour, desta vez iniciado na Bélgica, assim honrando o ciclista que, para mim, foi o número 1 de todos os tempos: Eddy Merckx.
Nos arredores de Londres, está também a decorrer o mais estético, puro e aliciante torneio de ténis, que se repete desde 1877! O que todos querem ganhar, mais do que os Opens de Roland Garros, dos Estados Unidos ou da Austrália. No Grand Slam é o que mais transporta a aliança incomparável - que os britânicos sempre protagonizam - entre o respeito pela tradição e o fascínio sereno da modernidade. A fidelidade da conjugação do obrigatório branco dos equipamentos e das imutáveis cores do torneio (o verde e o roxo inimitável) com os courts de relva aprimorados dão um ar de solenidade e frescura que nenhum outro torneio consegue igualar. Este ano presenteado com um notável percurso de João Sousa.
Wimbledon e Tour são a prova de que há mais (e belo) desporto para além do futebol.
Mundial de hóquei
Continuando nas (boas) memórias, são elas que ainda me fornecem o entusiasmo pelas competições internacionais de hóquei em patins. Lembro-me como vibrei com os anos áureos desta modalidade, outrora quase apenas em versão radiofónica. Se tivesse de eleger a equipa nacional que mais me encantou escolheria a dos anos sessenta, quase toda vinda de Moçambique: Moreira, Vaz Guedes, Adrião, Velasco e Bouçós. E, evidentemente, jamais esquecendo esse génio do hóquei prematuramente desaparecido, António Livramento. Ainda hoje me recordo também das equipas de então protagonizadas pela Espanha, Itália e outros países.
Quase sem se dar por isso e num ambiente pouco entusiasmante, começou no sábado passado o Mundial, desta vez na capital deste desporto, Barcelona. Felizmente, a RTP faz aqui serviço público, transmitindo os jogos da nossa selecção. Países há que desapareceram da competição principal, como a Holanda (que chegou a ser uma boa escola e até foi uma vez vice-campeã), a Alemanha, a Bélgica, o Brasil, os EUA e o Uruguai. Entraram nas competições países antes ligados ao nosso hóquei: Angola, Moçambique e até Macau. Mas o entusiasmo arrefeceu e as competições só o são verdadeiramente no jogo final, invariavelmente jogado por Portugal, Espanha, ou Argentina e, vá lá, Itália. O nosso campeonato de hóquei, sem dúvida o mais interessante do mundo, é cada vez mais jogado por hoquistas argentinos, espanhóis e de outros países. É essa uma das razões porque, na minha opinião, ao nível de selecção já não somos campeões do mundo há quase vinte anos. Temos selecções boas, mas sem fulgor que desequilibre.