Andorra para a estatística. França para a futebolística

OPINIÃO17.11.202003:00

1 Semana de selecções. Mais uma paragem nos campeonatos. E a seguir, ainda sem jogos da principal competição, é tempo de Taça. E aqui pergunto porque não fazer os jogos desta competição a meio de uma semana, dando prioridade aos campeonatos?

Entretanto, Portugal perdeu com a França, deixando, assim, de estar na fase final deste torneio que - repito o que já antes escrevera - melhor seria ter sido cancelado durante a pandemia. Um jogo perdido, como quase sempre acontece quando se joga, ainda que só no subconsciente, para 0-0. Sobre esta final já tudo se disse e escreveu, passando-se rapidamente do exagero encomiástico quando Portugal ganha (nem que seja à pobre Andorra) à hipérbole negativa de uma falha imperdoável.  Nem tanto ao mar, nem tanto à terra. Portugal, se se libertar de alguns traumas e medos que, por vezes, medram no sótão mental de técnicos e atletas, tem equipa suficiente para estar entre os possíveis vencedores dos grandes torneios mundiais e europeus.

2 Seja-me permitida alguma ironia para falar do Portugal-Andorra. Este jogo tão ansiado aconteceu, nas vésperas do Portugal-França. Em plena pandemia. No despido Estádio da Luz. Um teste crucial para aquilatar da robustez da selecção portuguesa. Andorra apresentou-se com fato de gala e o seu melhor plantel. Pena foi que os seus jogadores, que quase todos andam pelos Pirenéus, ainda não tivessem iniciado o competitivo campeonato andorrenho, pelo que, para eles, tratou-se de um encontro de pré-temporada. No ranking da FIFA, Portugal é o 5.º e Andorra, um pouco mais abaixo, é o 145.º. Já na classificação da UEFA, Portugal lidera e Andorra é o penúltimo (54.º), tendo imediatamente acima e abaixo, as selecções do rochedo de Gibraltar e da cidade-Estado de São Marino. Já na Liga das Nações, Portugal é o vencedor em título e Andorra é o último na categoria dos últimos. Logo, melhor contendor para animar a malta só poderia ser mesmo o principado de Andorra.

Lendo jornais e ouvindo rádio e televisão, sentia-se a importância deste prélio. Seria para preparar o decisivo jogo contra os gauleses? Não. Para poupar o dinheiro do convite feito a Andorra? Não, pois que mais caro, telúrico e complicado seria um jogo à borla entre Portugal e o Rabo de Peixe (que este clube me perdoe a comparação com Andorra). Para desentorpecer as pernas dos nossos craques? Também não creio, até porque mais valia terem feito umas corridinhas na Cidade do Futebol. Para haver mais internacionalizações e mais internacionais? Sim, tal como veio a verificar-se com dois jogadores, sendo que de um deles - culpa minha - nunca tinha ouvido falar.

É costume chamar a estes esfusiantes momentos jogos amigáveis. São também chamados particulares ou não oficiais (?), outras designações para momentos entediantes, sem chama, que servem para coleccionar minutinhos de internacionalizações e empolar, por esse mundo fora, o valor de troca de (alguns) artistas.
Verdade é que, nesta altura, este encontro em nada contribuiu para credibilizar este enorme desafio, sem fim à vista, que é o futebol sem espectadores e em silêncio. Posso estar errado, mas subentendi nas entrelinhas das palavras de Fernando Santos que também não lhe terá agradado muito tão magno encontro contra Andorra. Estes jogos-treino servem, afinal, para quê? Nestas alturas, lembro-me da campeã europeia Dinamarca, quando foi repescada à última da hora para substituir a então Jugoslávia (em guerra civil) para o Europeu de 1992. Chegaram lá, alegres e contentes, sem os tais jogos de preparação, e não é que alcançaram a vitória final!

Dantes, eram escassos os jogos internacionais e só jogavam 11! Agora há jogos para todos os gostos e treinos com todos os Liechtenstein, Ilhas Féroe, Andorras e Maltas do planeta, com carradas de internacionalizações por um minuto, a que qualquer sofrível jogador chega para, em jeito de cometa, entrar e sair fulminantemente (salve o cometa Éder… salvo pelos deuses).  

3 Mas, o ponto mais excitante e sempre invocado neste jogo, relacionou-se com a oportunidade de Ronaldo marcar mais uns golitos de modo a se aproximar da marca de um inolvidável jogador iraniano, tão inolvidável que nem me lembro do nome e que, décadas atrás, marcou muitos dos golos do seu ainda recorde contra as Maldivas, Quirguistão, Omã, Catar, Síria, Barém e outras preciosas selecções! Sei que isto que agora escrevo é de uma incorrecção futebolística que a ortodoxia patrioteira não me perdoará, mas esta de arranjar uns ceguinhos quaisquer para o Cristiano facturar a seu bel-prazer é quase batota e fica mal ao nosso notável craque. E nem ele precisaria disto, para seguramente bater o tal iraniano. Fernando Santos procurou ser sensatamente salomónico. Não ousou pô-lo a jogar de início, mas deu-lhe a metade mais saborosa do encontro que foi a segunda parte, em que os andorrenhos já não podiam com uma gata pelo rabo. Aconteceu que Ronaldo só marcou 1 dos 5 golos da 2.ª parte e falhou uns tantos, na ânsia de os marcar. Felizmente ele e toda a equipa não se magoaram, mas esse é sempre um risco por mais insignificante que seja um jogo e que talvez devesse ser acautelado no que ao capitão se refere.

4 As estatísticas valem o que (não) valem. Tornaram-se uma obsessão pretensamente técnica. Dependendo do seu utilizador ou manipulador, podem ser um anestesiante ou uma vitamina, um bálsamo ou um purgante. Veja-se o que se passa com as estatísticas económicas e sociais, e, agora, com as relacionadas com a COVID-19 …

O certo é que também invadiram o mundo desportivo. Para todos os gostos. Às vezes, dou comigo a olhar para a pletora de números e médias sobre um simples desafio e a chegar à conclusão de que vi, afinal, outro jogo. Outras vezes, o vencedor na relva é o derrotado na estatística e o perdedor real é o ganhador algébrico. As estatísticas são sempre sínteses que exigem apurada análise. A falta desta dá azo à mentira estatística ou, pelo menos, à sua não contextualização. Por isso, não vou em cantigas estatísticas. Ainda voltando aos golos de selecção, prefiro os 41 golos de Eusébio à facilidade com que hoje se ultrapassam estes números em termos absolutos, que não necessariamente em média dos jogos disputados (sem desprimor para o Pauleta e, evidentemente, para Ronaldo, o próximo número 1 mundial de golos de selecção).

Não desconsidero, porém, a avalancha estatística que nos entra pelos olhos dentro, todos os dias, a pretexto de qualquer coisa e que, às vezes, nem ao diabo lembra. Ela é o melhor marcador à esquerda, à direita, de cabeça, com o pé que tem mais à mão, de fora da área, etc., etc. Ela é o centésimo jogo no clube, as séries de tudo o que pudermos imaginar. Ela é a certeza estatística de que o clube X vai perder pontos porque desde mil novecentos e carqueja nunca venceu, ou de que o clube Y não tem hipóteses no país A porque assim ordena qualquer série estocástica anterior. Ele é o jogador salvadorenho que superou um outro patrício por ter alinhado 10 jogos consecutivos num clube. Etc., etc.