Amigos, inimigos e adivinhos

OPINIÃO19.01.202003:00

Ainda não é nascido e já espirra

1.- Pois.
- Nasce e depois, sim, espirra, fala, intervém, propõe.
- Nascer para um assunto, nascer para uma especialidade, nascer para um grupo, para uma equipa, para uma modalidade, nascer para um país, nascer para uma arte.
- Primeiro nasce, depois espirra. Conselho dos mais velhos, dos que já lá estão, dos que impõem respeito.
- A arrogância da juventude? Ainda não é nascido e já espirra.

Amigo a pedir, inimigo  a restituir

2.- Quando se aproxima vai doce e em bicos de pés, com a mão estendida, ouvido atentíssimo, cordato e tímido. E quando depois se afasta, já com o que queria, vai altivo e de costas surdíssimas a qualquer voz que lá de trás peça algo.
- E depois, mais tarde, quando o sujeito que emprestou vai pedir de volta aquilo que deu, o seu amigo estará ocupado, sempre apressado em direcção diferente.
- Restituir é um verbo bem mais lento do que o verbo receber. Recebemos a cem à hora: velocidade máxima, portanto, infiltrada no verbo receber. Já restituir é verbo lentíssimo, dois quilómetros/hora ou mesmo imobilidade absoluta.
- E eis, portanto um projecto possível: analisar a velocidade dos verbos da língua portuguesa.
- Verbos velocistas, exemplo: pedir; verbos a ritmo de dupla maratona: restituir.
- Uma forma, pois, instantânea de criar amigos: dar. Uma forma instantânea de fazer inimigos: pedir de volta.
Amigo a pedir, inimigo a restituir.

Catar pulgas em leões

3. - Actividade meio parva, digamos.
- E suicida.
- Não deves aproximar-te daquilo que te pode matar para dele tirares o pouco importante.
- Correrás, digamos, perigos desnecessários.
- Há uma série de outros animais mais calmos e domésticos aos quais podes catar pulgas.
- Podemos fazer uma lista enorme.
- Deverás pensar que amansas um leão com essa actividade de motricidade fina de catar pulgas. Mas não.
- Leão - com pulgas ou sem pulgas - é sempre um animal de mandíbulas e bom apetite capaz de arrancar os dedos a vossa excelência só com um movimento.
- Acalma, pois, um leão à distância, nunca corpo a corpo.
- Um bom conselho.
- Catar pulgas em leões significa, então, isso mesmo: correr muito risco para uma tarefa inútil.

Amizade em menino é água em cestinho

4. - Uma injustiça talvez.
- O que fazer?
- Eis uma hipótese: tornar o cesto num entrançado que resiste à água.
- Ou um cesto feito de metal, um cesto que nada deixa cair.
- Transformar o cesto, uma hipótese. A outra: transformar a água em elemento definitivamente sólido.
- Uma proposta, portanto, de alteração do provérbio…
- Diga.
- Amizade em menino é pedra em cestinho, por exemplo.
- Boa.
- Ou, outra proposta de alteração: amizade em menino dura o que dura o destino.
- Parece-me bem, parece-me bem melhor.

Adivinhar é bom, mas saber ainda é melhor

5. - Eis outras propostas, variantes e alterações.
- Vamos a isso.
- Só adivinha quem não sabe.
- Se não queres adivinhar, aprende.
- Adivinhou. Ou seja: não sabia.
- Belas variações, sim.
- Pensar numa escola para adivinhos, numa escola que não ensina, pelo contrário: é absolutamente contra a aprendizagem.
- Aqui não ensinamos. Queremos que as pessoas sejam adivinhas.
- Uma escola que promove a ignorância e o esquecimento.
- Trata-se de começar tudo de novo - o estudante do século XXI entra na escola e o professor diz: adivinha como se faz o fogo?
- E lá está ele, durante anos, recusando-se a aprender pois quer ser adivinho…
- …ali está ele então, durante anos, tentando adivinhar - em pleno século XXI - como se faz o fogo.
- Transformar a adivinha em ciência, eis o desafio.
- É um cientista da adivinha, eis os novos cientistas que por aí andam.
- Escola de adivinhos, uma linha da educação em absoluta expansão.
- Meu caro: não estudes, adivinha, adivinha.