Alma até Almeida (do João e do André)

OPINIÃO20.10.202004:00

1 Começo esta crónica pelo ciclismo. Já aqui tenho referido o interesse que sempre tive por este desporto que sabe conciliar, como poucos, o contributo individual e o trabalho colectivo. Na minha juventude, o ciclismo era o desporto-rei nos meses de veraneio. Na ausência de transmissões televisivas, era n’A BOLA que me deliciava a seguir, não apenas a nossa Volta, como também o Tour, a Vuelta e até o Giro de Itália. Homero Serpa, Carlos Miranda, Vitor Santos e Carlos Pinhão escreviam tão bem e com tal eloquência que era como se os leitores tivessem estado na caravana. O meu ídolo português foi sempre Alves Barbosa do Sangalhos, terra natal da minha Mãe, não esquecendo a emoção de ver correr o inesquecível Joaquim Agostinho. Lá fora, Jacques Anquetil, Eddy Merckx, Charly Gaul e Felice Gimondi foram os meus heróis, num tempo em que as equipas eram constituídas por países.

Entretanto tudo evoluiu e hoje podemos assistir no sofá a deslumbrantes transmissões em directo de todas as grandes Voltas (e também da nossa), que tudo nos dão a conhecer desde as grandes paisagens até aos mais requintados detalhes. Estando aparentemente controlado o estigma do doping, que ia dando cabo deste incomparável desporto, eis que o ciclismo se renova profundamente, a começar por uma nova geração de praticantes. Nela está o português João Almeida que, há 12 dias consecutivos, enverga a camisola rosa, símbolo da liderança. Com apenas 22 anos e estreando-se numa das 3 principais competições por etapas, não sei se vai acabar por vencer, pela primeira vez para Portugal, uma grande Volta, mas o que fez até agora já superou todas as expectativas. Tenho visto este Giro com toda a atenção (pena não haver um dos nossos canais a transmiti-lo e pena não termos Marco Chagas com os seus sapientes comentários). Para além da satisfação de ver um português a bater tantos consagrados, o seu decurso fora do tempo normal, em pleno Outono, oferece-nos uma policromia vegetal absolutamente inigualável. Venham mais provas nesta fase do ano, até para fugir à canícula do pino do Verão.

2 Mas não fica por aqui a exaltação portuguesa. No futebol, a nossa Selecção dá cartas e deixou de ser uma utopia afirmar-se que temos condições para nos sagrarmos campeões do mundo. Pela primeira vez na história do nosso futebol, Portugal tem um plantel de 20 a 30 jogadores de elevado nível em todas as posições, deixando de estar dependente de um ou poucos atletas diferenciadores. Fernando Santos, no seu estilo gradualista e paciente, muito tem contribuído para tal, assim como a circunstância de a grande maioria dos jogadores seleccionáveis jogar em campeonatos europeus liderantes. Evidentemente que Cristiano Ronaldo é insubstituível e já resolveu muitos jogos à custa do seu talento. Mas, para mim, o nível da Selecção está plenamente assegurado e até me atrevo a dizer que Portugal, do ponto de vista associativo, joga melhor sem Ronaldo.

3 Chegámos à 4.ª jornada do campeonato e tive de fazer algum esforço para me lembrar do que se tinha passado nas três jornadas anteriores. É no que dão tantas datas FIFA, no início de uma temporada, dificultando o entrosamento das equipas fornecedoras de jogadores seleccionáveis. Foi um fim-de-semana bem positivo para o Benfica, que realizou uma consistente exibição e alcançou um resultado que até se pode considerar escasso. Permito-me subscrever e transcrever o preciso e magnífico resumo da crónica da partida escrita por Gonçalo Guimarães ontem n’A BOLA: «Centímetros de decepção e quilómetros de prazer.» Ou, tivesse sido um jogo sem os centímetros do sistema VAR, e o resultado não teria sido 3-0, mas de 6-0. Pena a lesão de André Almeida, um grande e polivalente profissional, que espero possa regressar com a sua habitual fibra de quem nunca desiste, ou como se diz popularmente, com alma até Almeida. Continuo a pensar que Luca Waldschmidt é um jogador da excelência da escola alemã: sobriedade, eficácia, inteligência e linearidade, sem tiques de vedetismo. Os centrais dão indicações de poderem constituir uma dupla de grande categoria. Darwin, ainda que esperando o seu primeiro golo, assiste colegas com brilho e evidencia potencialidades que vão ser determinantes com o passar do tempo.

4 Fechado o longo hipermercado de transferências, já se começou a falar no minimercado que reabrirá em Janeiro. Eu sei que há muita gente que, directa ou indirectamente, vive não do futebol, mas dos ditos mercados. Mas que diabo, já enjoa tanto palavreado em redor do que aconteceu, do que não aconteceu, do que não tendo acontecido é necessário especular, e do que acontecerá se, entretanto, não vier a acontecer. Ui!, se tantas hipóteses pagassem imposto, como aumentaria a receita fiscal! O caso mais enfadonho foi o de Cavani, levado, em horas a fio, pelas televisões. Entre o tempo consumido pela vinda-não-vinda do uruguaio para o Benfica foi um mês de fartote de notícias-não-notícias. Lembro-me, por exemplo, do que nos era informado: que só faltavam os pormenores para Cavani assinar, que já vinha a caminho, com Tires ali tão perto. Tudo numa roda viva em viagens para Lisboa, via Paris, com paragem lúdica em Ibiza para refrescar ideias. Pensava eu que, tendo terminado esta viagem cavanística à volta do mundo para aterrar em Manchester, Cavani desapareceria dos radares noticioso-especulativos. Mas não, a CMTV encarregou-se de disponibilizar mais umas fartas horas de Cavani com os habituais protagonistas. E disseram-nos que, afinal, Cavani poderia ter ido para o FC Porto, que Vieira até teria dito «pois que vá» (verdade ou mentira, achei muito bem) e que o pobre uruguaio, contrariado é certo, lá foi para o Man United que lhe pagará um indeterminado dobro. Suspeito que Cavani vai continuar a suscitar horas de vácuo noticioso. Mas se é disso que algumas alminhas precisam, pois que seja então assim, para gáudio de boas audiências e conversas de café com 2 metros de distância. Só peço que ponham uma bolinha no canto superior direito do ecrã…

Concluído o mercado - secção I, aprontam-se as baterias para o mercado secção II, em Janeiro. Dois apontamentos sobre esta febre mercantil: o primeiro é a erosão que estas proximidades de datas podem provocar nos plantéis. Mal a época oficial começou já se está a pensar em mudanças dois ou três meses depois. O valor da estabilidade é, assim, corroído pelo contínuo da instabilidade. Depois, parece que tudo continua numa boa, numa montanha de milhões sobre milhões, como se fosse idêntico ao futebol pré-pandemia. Por exemplo, nos clubes portugueses, onde estão as receitas correntes para alimentar plantéis tão caros e encargos fixos sempre elevados? Estádios vazios, merchandising decrescente, publicidade enfraquecida, restando tão-só os direitos televisivos, serão suficientes? Trata-se de um salto no (quase) desconhecido que, pelo que vejo, não refreou o salto em frente.