Ainda o Mundial, agora o defeso e sempre Shéu

OPINIÃO11.07.201804:28

1 - O Mundial de futebol está a acabar. Surpresas atrás de surpresas, eis que - à hora que escrevo - há quatro selecções semifinalistas, todas europeias e nenhuma favorita à partida, se exceptuarmos a França. Pelo caminho ficaram, ainda na fase de apuramento, a tetracampeã Itália, a três vezes finalista vencida Holanda, depois na fase de grupos, a poderosa Alemanha e ainda campeã em título, a que se seguiram a Argentina em fase de decadência e o Brasil em roteiro de brinca-na-areia em que vem há muito insistindo. E também Portugal, que não sendo considerado favorito, é campeão europeu e pouco fez de registo para recordar. Este tem sido o campeonato onde verdadeiramente nenhuma selecção se evidenciou claramente melhor do que todas as outras. Ao contrário, há quatro anos, com a Alemanha e há oito anos, com a Espanha, as suas vitórias foram uma expressão natural e expectável da competição.

Cá para mim, gostaria que fosse o Reino de Sua Majestade a levantar o ceptro. Não porque empolgue, antes e sobretudo porque admiro a simplicidade e nobreza que é apanágio do futebol jogado à inglesa, onde este grande desporto nasceu e se desenvolveu. Voltaríamos, assim, a 1966 e ao seu único título conquistado depois de derrotar Portugal e a Alemanha. Reconheço, porém, que a França é mais poderosa e a Bélgica tem o melhor futebol das quatro selecções.

Curiosa é a circunstância de, desde 1998, o país anfitrião não conseguir ganhar o campeonato mundial. Nalguns casos, compreensivelmente, como na África do Sul, Coreia do Sul e Japão, noutros com decepção para os fortes países organizadores (Brasil e Alemanha).

Estes torneios são, cada vez mais, grandes acontecimentos planetários, com uma mediatização global constante e muito dinheiro em redemoinho, mais tarde ou mais cedo, pago pelos consumidores sem disso se darem conta. Mas, quanto ao futebol jogado, vão piorando de quadriénio em quadriénio. Dos muitos que já acompanhei pela televisão, classifico este como o pior. Não que não tenha havido momentos empolgantes e alguns (poucos) jogos de excelência, mas, de um modo geral, foi tudo muito sensaborão, com minutos e minutos seguidos de futebol pastoso, sonolento e desinteressante. Cheios de tácticas medrosas e do medo de perder, os jogos arrastaram-se até ao sono a que, por vezes, sucumbi e à guilhotina do zapping que usei com conta, peso e medida.

Também ao nível das individualidades não houve nenhum jogador que tenha maravilhado. Precocemente afastados, Ronaldo e Messi não marcaram este mundial. Neymar foi uma desilusão. Houve, é certo, jogadores num nível mais elevado, mas não hegemónico. Falo de Mbappé, Modric, Lukaku, Courtois e pouco mais.

Um ponto merece, em qualquer caso, ser relevado: a serenidade com que decorreu este campeonato, sem vandalismos ou actos de agressão de qualquer espécie. E, também, no que se refere às selecções que, de um modo generalizado, trabalharam com fair-play, mesmo nos momentos mais delicados de derrota ou de eliminação.

Assinalo ainda, com agrado, o excelente nível da transmissão de jogos feitos pela televisão russa. Se é certo que o que se passou nos relvados chegou até nós com elevado nível, designadamente nos pormenores que, não raro, é onde reside a diferença de qualidade, o que aqui refiro como mais conseguido foi o modo humanizante, oportuno, estético e sagaz como nos forneceram imagens e momentos em redor das partidas. Pormenores soberbos da festa na assistência, instantes nas bancadas que radiografaram a alma de espectadores entre a euforia e a decepção, momentos de saboroso convívio familiar e geracional que, em suma, nos transmitiram o itinerário para e em redor dos jogos. Por fim, a capacidade de seleccionar através de imagens o que se passou nas entranhas dos jogadores, homens vencedores e vencidos, após os jogos.

2 - Entretanto, prossegue o mercado, pois claro. Creio, aliás, que muitos jogadores no Mundial se preocuparam mais com transferências reais ou virtuais do que com o torneio. Temos ainda mais de mês e meio à frente, com uma overdose de trocas, baldrocas e tapiocas.

Milhões. Milhões. Milhões. Milhões. Milhões. Milhões. Milhões. Milhões. Milhões. Milhões. Milhões. Milhões. Milhões. Milhões. Milhões. Milhões. Milhões. Milhões. Milhões. Milhões. Milhões. Milhões. Milhões. Milhões. Milhões. Milhões. Milhões. Milhões. Milhões. Milhões. Milhões. Milhões. Milhões. Milhões. Milhões. Milhões. Milhões. Milhões. Milhões. Milhões. Milhões. Milhões. Milhões. Milhões. Milhões. Milhões. Milhões. Milhões. Milhões. Milhões.

Está o leitor cansado de ler tantas vezes milhões? Pois é isto que ouvimos e lemos a toda a hora neste defeso. Discutimos estes milhões como se de trocos se tratassem, como se fosse a coisa mais banal do mundo. Este ganha 3 milhões (líquidos com certeza, que é coisa diferente do que o comum dos mortais sente com o bruto nos impostos), aquele só assina por 4 milhões, a transferência está presa pela minudência de 5 milhões. É um fartote, um mundo à parte, com um escrutínio muito duvidoso e com o cagaço de os poderes políticos não se meterem e nada regulamentarem. Ao mesmo tempo, mais ou menos 5 euros num salário mínimo nesta Europa decadente ou o vencimento de um alto funcionário de uma qualquer administração pública que cabe num dedo do salário de um futebolista mediano vindo de um qualquer canto do mundo é, aí sim, um caso sério que se discute ferozmente.

3 - Felizmente ainda há espaço - embora cada vez mais diminuto - para falar de exemplos que perduram acima e para além dos milhões. Exemplos de carácter, de profunda dignidade profissional, de lealdade incondicional ao seu clube, de sensatez e de integridade em qualquer hora e em todas as funções. Refiro-me aqui a Shéu Han. Tenho bem presente o jogador de eleição que sempre foi, sem alardes de vedeta efémera, com a proficiência de um trabalho constante e seguro. Está entre os jogadores que, na minha memória, melhor personificou o atleta eticamente irrepreensível na lealdade para com colegas de profissão, que deveria constar dos manuais de acolhimento para todos os jovens que se lançam neste ofício. Sempre discreto, sempre atento, sempre um senhor, Shéu foi depois, em múltiplas funções, um responsável que serviu com toda a nobreza o seu clube de sempre, o Benfica. Entendeu agora terminar com as suas funções de secretário técnico e, no momento da despedida, quer Luisão, quer Rui Costa sintetizaram o seu perfil e percurso sem mancha. Impossível não ter saudades deste grande exemplo do futebol nacional e do Benfica. Como benfiquista, o meu obrigado infinito a Shéu.