A violação das leis morais
Acordar que nenhum clube contrataria quem rescindisse por razões motivadas pelo Covid-19 levanta muito mais do que questões legais
N ÃO sei se os clubes violaram, de facto, a Lei da Concorrência quando assumiram, em abril do ano passado, um acordo que estabelecia que nenhum deles contrataria um jogador que rescindisse com outro por motivos relacionados com o Covid-19. Uma espécie de pacto de não agressão que foi visto, na altura, como histórico, pela rara imagem de união que o futebol profissional português transmitia para o exterior em tempos muito complicados. Não percebo o suficiente de Direito, muito menos de leis da concorrência, para afirmar que sim ou não. Sei, apenas, o que li na Decisão de Inquérito. E sei que tanto o silêncio que ontem todos os envolvidos dedicaram ao assunto como o facto de a Liga ter marcado uma reunião de emergência com os clubes para discutirem o tema parecem indicar que a coisa é séria. Como sérias costumam ser as coisas quando se mete ao barulho a Autoridade da Concorrência, que não brinca, muito menos com as multas. Prefiro, portanto, esperar para ver o que dará isto no final.
Mas há, de facto, no meio de todo este tema um ponto que merece reflexão. Pode meter a Lei da Concorrência. Ou, talvez, seja apenas uma questão laboral. Mas prefiro tirá-lo dos termos legais e focar-me, apenas, nos aspetos morais. O que se fica a saber, pela resposta da Liga à acusação da Autoridade da Concorrência, é que, perante as dificuldades que os clubes atravessavam devido à pandemia de Covid-19, sentiram necessidade de se proteger da possibilidade de «alguns atletas considerarem utilizar abusivamente esta situação de debilidade em benefício próprio». Vai daí, decidiram, em conjunto, que se não podiam impedir os jogadores de rescindir contrato, podiam, pelo menos, fazê-los pensar três vezes, garantindo-lhes que ninguém, nas duas ligas profissionais - bem, pelo menos deixaram-lhes o Campeonato de Portugal e os Distritais... -, os contrataria se, de facto, decidissem rescindir. Teriam, pois, os jogadores de se sujeitar a reduções de salário forçadas ou, em última análise, a aguentar meses sem receber ordenados. Ficavam, em resumo, de mãos atadas. Repito, não sei se isto configura, de facto, uma violação da Lei da Concorrência. Ou de qualquer outra lei. Mas que viola, sem dúvida, uma série de leis morais (que, não dando multas, dão uma péssima imagem...) não me parecem restar grandes dúvidas.
É verdade que os clubes passaram, naqueles meses em que o campeonato esteve parado sem prazo de regresso, períodos muito complicados. E são até compreensíveis (justificadas, até) muitas das medidas que adotaram para sobreviverem. Mas do que me lembro, sinceramente, foi dos próprios jogadores demonstrarem, sempre, grande solidariedade com essas medidas, cientes de que ter paciência e fazer cedências seria o único caminho possível para que os interesses de todas as partes se conjugassem no fim de tudo. E acredito que muitos desses futebolistas, em especial os que jogavam em clubes de menor dimensão (na Liga e na Liga 2), que não têm contratos milionários, terão, também eles, passado por grandes dificuldades. Tentar condicionar os seus direitos, obrigando-os a aguentar tudo o que viesse através de um acordo como o que os clubes assumiram naquele abril de 2020, é, para dizer o mínimo e não usar palavrões, condenável. Ainda bem que, não havendo mais ninguém que o fizesse, a Autoridade da Concorrência se meteu em campo. Já serviu para alguma coisa.
Espero, sinceramente, que este processo não dê em nada. Ou, se der, que dê multa mínima, até porque as coisas continuam a não estar fáceis e não vejo como sobreviverão alguns clubes se receberem a coima máxima. Mas que fique, pelo menos, como lição para uma indústria que ainda acha que pode fazer tudo o que quiser, sem prestar contas a ninguém. Não é, percebe-se, bem assim. E, em casos como este, ainda bem que não é.