A vida continua na Luz
Rui Vitória só deve queixar-se de si mesmo. Não foi capaz de acabar a obra que lhe fora pedida por manifesta insuficiência na liderança, na argumentação, na gestão do plantel e na qualidade do produto.
É verdade que o céu apenas começou a ficar nublado no último ano e meio, mas a um treinador de grande clube exige-se-lhe que ganhe sempre e jamais se lhe aceita que, para equilibrar o deve e o haver, tente contrapor aos ruídos provocados pelas derrotas de hoje as palmas suscitadas pelos triunfos de ontem.
Não foi por causa de alegado desinvestimento no futebol, nem da luz presidencial que se apagou em Portimão, nem por outro motivo que brote de subtil campanha pré-eleitoral em início de erupção que Vitória esboroou num ápice dois anos de relevante trabalho e assinaláveis conquistas. Foi culpa dele. Por teimosia, por recusar refletir, ver, ouvir, ler ou sentir. Fechou-se no seu casulo, mais os dois adjuntos, uma novidade esta época, com a afetuosa ideia de se sentar entre ambos no banco de suplentes e entregando a Minervino Pietra a tarefa de fazer as substituições, uma desconsideração que Bruno Lage deverá corrigir...
Vitória foi vítima da sua obstinação. Enredou-se em sucessivos equívocos e jamais libertou um pingo de humildade para aceitar que o caminho por ele escolhido estava errado. Não se tratou de uma questão de táticas. O problema residiu ao nível do relacionamento humano, ou da falta dele, deixando que se tivesse chegado a um estado de saturação sem retorno, a um ponto em que os jogadores, provavelmente, ou já não o escutavam ou já não acreditavam no que escutavam. O que para mim constituiu surpresa tamanha, por considerá-lo homem de valores, tolerante e justo na concessão de oportunidades em função do único critério que o adepto verdadeiramente reconhece: o desempenho dos jogadores e a sua disponibilidade física e mental em benefício do coletivo.
Ao recusar essa evidência Vitória entrou em circuito fechado e de cada vez que resolveu surpreender geralmente correu mal, na medida em que na maioria dos casos se tratou de falsas oportunidades aos ignorados do plantel, fartos de saberem que, jogassem bem ou mal, no compromisso seguinte voltariam à condição de suplentes ou seriam até chutados para a bancada.
Ao tapar os olhos com as mãos, Vitória transformou-se num embaraço e em vez de sair pela porta da frente, sujeitou-se a usar a porta de trás e com a sensação de alívio de quem se libertara de um sarilho, porque, sejamos claros, a seguir ao colapso de Portimão Rui Vitória teve a sensatez necessária para não se atrever a encarar a família benfiquista no Estádio da Luz, neste jogo com o Rio Ave.
Vitória falhou no penta e nesse ano, em que tanto se atacou o presidente por ter desinvestido, com as vendas de Ederson, Lindelof e Nélson Semedo, o treinador jamais veio a terreiro solidarizar-se, afirmando, no mínimo, que os objetivos desportivos não seriam prejudicados.
Se nesse ano o penta fugiu não foi por culpa da defesa. Deveu-se ao novo ordenamento tático, legítimo e até apropriado, mas deficientemente aplicado e grotescamente desenvolvido, sobretudo após a lesão de Krovinovic.
Em vez de trabalhar um sistema que avaliasse e valorizasse as características dos jogadores, procedeu em sentido inverso: desenhou a tática e obrigou-os a caberem nela, sem soluções alternativas, como se viu. Percebo que o tenha feito, mas não desta maneira desajeitada, em que foi preciso vê-lo abdicar para João Félix alinhar onde deve e Ferreyra fazer prova de vida, por exemplo.
Vitória chegou aos quartos de final na Champions, mas falhou na época transata ao ficar a zero, uma classificação humilhante e da qual nunca apresentou um pedido de desculpas à massa adepta. E quando resolveu falar, em vez daquela tirada de «há vida para além da Liga dos Campeões», o melhor teria sido nada dizer. Aliás, um erro colossal foi nunca ter dispensado o devido cuidado à comunicação.
Saiu Rui Vitória, com a imagem impoluta de pessoa séria, mas a vida continua, como ele diria. Entrou Bruno Lage, ilustre desconhecido, que faz a ponte com o futuro. Aposta de risco? Como todas as outras, sendo certo que conhece de olhos fechados o mundo da formação benfiquista e experimentou exigente tirocínio em Inglaterra. Creio, por isso, que nenhum mal virá ao mundo se ficar até ao final da época, devidamente protegido, como é óbvio. Até para colocar ponto final nesta epidémica conversa fiada. Bruno Lage é jovem, sim, mas às vezes os bilhetes de lotaria dão prémio.
Sobre as cenas dos próximos capítulos, acerca desta matéria, repito-me: Luís Filipe Vieira vai vendo e ouvindo e decidirá quando e como entender.