A vergonha!
Não é bater no fundo a revelação de conversas privadas sem qualquer fundamento?
JÁ é muito difícil sabermos a quantas andamos, como carinhosamente se lamentava a minha avó Lucinda - querida mãe da minha querida mãe - sempre que o estado do tempo a confundia.
Neste tempo de pandemias orgânicas, mas, porventura, também espirituais, tão depressa vemos o «hacker» Rui Pinto ser elevado a herói, por contribuir, ainda que criminosamente, para pôr, realmente, a descoberto práticas, alegada ou mesmo visivelmente ilícitas, nomeadamente promovidas no mundo do futebol, como vemos, por exemplo, um outro «hacker», conhecido por Zambrius, acabar de ser condenado a seis anos de prisão por crimes de acesso ilegítimo, dano informático e sabotagem, segundo a sentença - sabendo-se que entre as suas vítimas estão, por exemplo, a SAD do Benfica e a Altice Portugal. Uns profetas e outros malfeitores? Justificarão os fins todo o tipo de meios?
Como podemos, ainda, saber a quantas andamos, se tão depressa vemos reveladas - sempre em clara violação do segredo de justiça - escutas telefónicas de um determinado processo judicial, ainda que com relevância para a investigação, como logo somos publicamente confrontados com a transcrição de conversas de foro verdadeiramente privado e sem qualquer matéria relativa à investigação judicial que, como é o caso, as autoridades policiais ainda levam a cabo?! E, desta vez, justificarão os fins toda a violação que se faça? Não deveríamos, com franqueza, corar um bocadinho de vergonha?!
PONTO um: só mesmo por brincadeira, e de muito mau gosto, é que pode justificar-se que alguém, na máquina da Justiça, se divirta a revelar para a Comunicação Social (para alguma Comunicação Social, já agora…) escutas telefónicas de processos de investigação em curso, violando grosseiramente o segredo a que está obrigado, ajudando a destruir a imagem de um pilar absolutamente essencial de um Estado de Direito.
Na verdade, em nenhuma circunstância (seja qual for o caso) deveria, pois, admitir-se a revelação de dados de uma qualquer investigação judicial.
O normal, evidentemente, parece-me que seria revelarem-se os processos após a realização dos julgamentos, para que a sociedade pudesse então escrutinar, avaliar e compreender as decisões da Justiça e os eventuais comportamentos ilícitos, imorais ou mesmo criminosos de todos os condenados.
Já no caso (e são muitos) em que o desfecho é clara e inequivocamente a absolvição de um réu, seria, entretanto, indispensável à sociedade proteger honras e dignidades. E sabemos bem que não é isso, lamentavelmente, o que acaba por suceder.
Uma Justiça que não violasse o seu essencial segredo evitaria muito do que é inaceitável numa sociedade de respeito e de Direito, em particular os medievais julgamentos populares, as condenações antecipadas, as influências ao trabalho da própria Justiça e a desonra de pessoas que, vindo a ser consideradas inocentes, sublinho, não mais se recompõem.
PONTO dois: considerando, porém, ter-se tornado uma inevitabilidade, entre outras coisas, a violação do segredo de Justiça nesta, em muito desgovernada e desregulada, sociedade da comunicação, já sabemos, há quase duas décadas, que temos de nos habituar à ideia de que os julgamentos serão sempre, em primeiro lugar, muito feitos na praça pública e só depois, com regras (pelo menos, por enquanto…), nos verdadeiros tribunais.
Sabemos que a cada vez mais incontornável violação do segredo de justiça produz, na larga maioria das vezes, efeitos devastadores, porém, não apenas para os investigados, mas também para a própria Justiça, sobretudo quando a montanha das investigações parece enorme e cheia de conteúdo, e as decisões dos tribunais acabam, no fim, por parir pequenos ratos.
PONTO três: o modo como nesta investigação judicial a que as autoridades deram o nome de «Cartão Vermelho» se volta a abusar da violação do segredo de justiça, como em todos os mais mediáticos processos do nosso País, em nome da prática comum de manter informados jornalistas e, através destes, a opinião pública, com o objetivo, também, parece-me, de o sistema judicial melhor convencer a opinião pública da consistência, validade e credibilidade do trabalho, mais se confunde, afinal, num autêntico carrossel de incompreensões sempre e quando são despejadas na calçada escutas de conversas privadas sem qualquer consequência na esfera das investigações judiciais, o que é, com todo o respeito e sem qualquer processo de intenções, verdadeiramente inacreditável. E vergonhosamente lamentável! E, desculpem o sublinhado, profundamente inaceitável!
NUM Estado de Direito, nunca poderemos deixar de considerar ilegalmente imprópria a violação do segredo de justiça, porque é o segredo de justiça que garante direito e liberdade fundamental de qualquer cidadão. Mas sempre que o segredo de justiça é violado, a Comunicação Social cumpre o que lhe parece um papel determinante no escrutínio da moral e das boas práticas, tornando públicas informações consideradas relevantes para as investigações judiciais em curso. É assim agora, já foi assim no passado, dificilmente deixará de ser assim no futuro.
O que devemos todos questionar, no entanto, neste caso do «Cartão Vermelho» e de algumas escutas que têm, com evidente ar de orquestração e de inqualificável propósito, vindo a ser reveladas dia após dia, numa espécie de premeditadas conta-gotas, é a relevância que têm para a investigação judicial que envolve, entre outros, o anterior presidente do Benfica, conversas, repito, absolutamente privadas entre gente do futebol, e exclusivamente sobre matéria que diz respeito, apenas, ao futebol e à esfera privada de cada um.
Qual é, afinal, a intenção de pôr cá fora o que as autoridades andaram telefonicamente a ouvir? Revelar contornos essenciais à investigação que contribuam para melhor perceção da opinião pública sobre alegadas más práticas de arguidos ou, por outro lado, ajudar a criar atmosferas negativas nas relações com o futebol de gente que nada têm que ver, que saibamos, com a investigação judicial em causa (como José Mourinho, Jorge Jesus, Bruno Lage, Hugo Viana, Jorge Mendes…) e quebrar o fundamental direito de podermos ter uma normal conversa privada - sem qualquer objetivo ilícito - sem a vermos vergonhosamente exposta na praça pública?!
Uma opinião sobre um treinador, um comentário sobre jogadores, o pedido de colaboração a um agente de futebolistas, a tentativa de uma contratação ou a equação desta ou daquela transferência, desabafos sobre equipas, estruturas técnicas ou dirigentes indiciam alguma prática criminosa ou sequer ilícita ou mesmo imoral? Quantas conversas minhas com tanta gente do futebol não fariam, qual romance de cordel, as delícias da coscuvilhice e do «voyeurismo», por vezes quase instintivamente feroz, em que se transformou boa parte da estrutura social dos nossos dias?...
AINDA agora, na Austrália, três juízes tomaram a decisão de expulsarem do país o tenista sérvio Novak Djokovic, impedindo assim uma das maiores estrelas do desporto atual de participar na fantástica competição que é o Open local, e esta quinta-feira tornaram público os fundamentos dessa decisão, para que todos, na Austrália e no mundo, os possam compreender e a partir deles formar opinião livre.
O que os serviços do tribunal australiano não fizeram foi andar, durante o processo, a revelar, por exemplo, o que Djokovic pode ou não ter declarado à Justiça australiana ou que investigação seguiram, porventura, as autoridades do país para reunir toda a matéria essencial à decisão. Seria, por um lado, deixar o atleta mais indefeso ainda, e mais exposto a circunstâncias verdadeiramente desnecessárias (seja lá qual for a opinião de cada um), e, por outro, seriam sempre as próprias autoridades a trair o Estado de Direito. Cá e lá, falamos, evidentemente, de assuntos muito diferentes, mas de um só procedimento judicial.
Bem sei que não somos do primeiro mundo; mas podiamos disfarçar um pouco melhor!...