A sonhar com o dia L

OPINIÃO25.03.202003:00

TALVEZ seja este o verão das nossas vidas, como sugeria há dias o Rodrigo Guedes de Carvalho no fecho de mais um Jornal da Noite da SIC. Isto partindo do principio de que o maldito surto começa a estabilizar na data prevista (meados de abril?) e depois a enfraquecer progressivamente até o governo e a autoridade sanitária decretarem o dia L - da Libertação, da Loucura, da Liberdade. Não sei em que estado (anímico, físico, económico) estará o país quando chegar essa altura. Imagino que esta paragem brutal venha a causar prejuízos muito consideráveis no equilíbrio e na bolsa das pessoas e das instituições que fazem Portugal andar para a frente todos os dias.

Mas acredito que haverá Sol no dia L. Sol e essa luz dourada única, inimitável, que por essa altura transforma Lisboa-ao-fim-de-tarde na cidade mais bela e melancólica do Mundo (uma luz de tonalidades africanas mas também goesas e sul-americanas, como convém à capital de um antigo império transcontinental); talvez haja calor a associar-se à vontade infinita de sair para a rua e celebrar o regresso à normalidade. Acredito numa gigantesca explosão-libertação coletiva de muitas coisas, muitas ânsias numa só:  alegria,  alívio, agradecimento, quiçá esperança - nem que seja baseada na premissa do já passou e podia ter sido muito pior.
As ruas, as avenidas, os parques, os jardins, os largos (sobretudo os que têm coretos) e as frentes ribeirinhas e marítimas serão entupidas por quem andou a sonhar com elas fechado em casa.  Realmente, ando a sonhar com isso e ainda só passou uma das não sei quantas semanas de isolamento forçado e cumprimento rigoroso de uma série de proibições contra natura, como são as que impõe distância social (ainda para mais sendo nós um povo latino, solar, caloroso, de verbo e toque fácil). Ando a sonhar por antecipação com todas essas coisas que hoje nos estão completamente vedadas e que, afinal, percebemos melhor agora, são muitíssimo mais importantes do que nos parecem no dia-a-dia (se é que alguma vez paramos para dar conta delas). Por exemplo: sair em bloco para a rua com a minha família (somos sete e quando estamos todos juntos formamos um ajuntamento atualmente proibido por lei…). Esse é um de muitos exemplos. Posso citar duas pessoas que passei a ver de outra maneira nestes tempos de confinamento rigoroso apenas interrompido por surtidas matinais ao coração da capital (Bairro Alto-Chiado, onde ficam os estúdios d’ A BOLA TV): o senhor Amadeu, do quiosque logo à saída da estação de metro do Chiado (onde também costuma estar a sua mulher, a senhora Anabela), que sempre achei uma simpatia e agora considero um herói como os médicos e os bombeiros; e a senhora Patrícia, que também esbanja simpatia e mantém em funcionamento na rua da Misericórdia a única papelaria em toda a zona: eu disse senhora??? É uma diva !!!

Acredito que vamos saudar o regresso do desporto, do futebol e do campeonato com um entusiasmo enorme, apesar de só duas equipas estarem a lutar pelo título. Aposto que tanto o estádio do Dragão como o da Luz estarão lotados nos jogos do regresso; como ontem dizia neste jornal o meu velho amigo Francisco José Viegas, o «futebol será o paracetamol para o desânimo de milhões de pessoas». Gostava muito que os jornais, nomeadamente os desportivos, pelo menos durante esses meses de reconciliação com a vida, voltassem a vender em banca como vendiam na era anterior à internet e às redes sociais. Nem que fosse para compensar o esforço hercúleo que estão a fazer agora. O leitor há de concordar que não é fácil fazer um jornal desportivo todos os dias com o desporto completamente parado. Não sei se o próximo verão, que se espera generoso, de reconciliação com os prazeres mais simples da vida, trará com ele mudanças significativas na forma como vivemos o futebol e as rivalidades que lhe dão sal e pimenta. Era bom que sim. Que mantivéssemos a paixão, mas que passássemos a ser mais civilizados na discussão clubística e muitíssimo MENOS tolerantes com a boçalidade, com a chico espertice e, sobretudo, com aqueles que de alguma forma atentam contra a seriedade da competição profissional - aquilo que NUNCA pode estar sob suspeita. No fundo, que passássemos a censurar e expressamente rejeitar todos aqueles - maçãs podres -  que contaminam este desporto tão belo, quase sempre de forma subterrânea (manobrando marionetas de terceira categoria), e que, vivendo de expedientes, truques e golpes, permitem-se servir-se dos clubes que representam e que por vezes até lideram…

A brutalidade desta crise de contornos únicos (e atenção que escrevo isto sem que se saibam os efeitos finais na economia, provavelmente devastadores …) devia obrigar-nos, de uma vez por todas, a perceber o que é importante e o que não é; o que é aceitável e o que não é; o que é tolerável e o que não é. Gostaria muito que o dia L e o verão das nossas vidas trouxessem algo de novo ao desacreditado futebolzinho caseiro. Mas estou cada vez mais como São Tomé: ver para crer. Há muito que deixei de acreditar em promessas, sound bytes vistosos e amanhãs que cantam. São trinta e muitos anos a ver (e a escrever sobre) mais do mesmo no futebol português. Sem dúvida que têm acontecido coisas muito positivas nos últimos anos que não podem deixar de ser destacadas e enaltecidas. Mas é impossível dizer (pior: fingir) que tudo está bem enquanto este futebol continuar refém - e continua a estar - de poderes tentaculares quase absolutos que corrompem, contaminam e apodrecem o que devia manter-se são. O guião não muda e o cheiro varia pouco. Apenas vão alternando as cores. E como não acredito um milímetro no dirigismo do vale tudo que continua, de pedra e cal, a fazer escola nos clubes do costume …

PS - Trapalhadas de vária ordem continuam a perseguir a Direção liderada por Luís Filipe Vieira e a colocar o Benfica sob o escrutínio de autoridades estatais. A CMVM saberá por que motivo chumbou a OPA da Benfica SGPS sobre 28% da SAD. A versão mais simpática é que o regulador do mercado detetou irregularidades no mecanismo de financiamento da operação que, sejamos frontais, não é clara (a SAD, objeto da oferta, é que está  financiar a oferente Benfica SGPS ?!?) e ainda por cima permite especulações de vária ordem dada a especificidade da relação entre o acionista presidente, LFV, e José António dos Santos, o maior acionista individual. Tivesse Luís Filipe Vieira uma imagem pública à prova de bala e se calhar não haveria suspeitas nem grande falatório. Mas não é o caso. E o Benfica clube-marca continua a pagar o preço de se ver envolvido em episódios que suscitam dúvidas com a chancela da atual Direção.