A sociedade da hipocrisia
Não existirá clube com futebol profissional, em Portugal, que não tenha organizada uma extensa base de dados com informações pessoais e profissionais sobre os principais protagonistas do setor, sejam eles jogadores, treinadores, árbitros, dirigentes federativos, associativos, de clubes ou de órgãos de disciplina ou de justiça.
Será isto legítimo? Teórica e moralmente, não, mas o futebol não é, exatamente, o bastião da moralidade numa sociedade hipócrita e cada vez mais trampiana na sua estrutura mental.
Podemos, no entanto, propor um pequeno jogo aos nossos leitores: qual será, em Portugal e no mundo moderno e supostamente civilizado, o sector do país que pode afirmar, com a maior das convicções, que nós somos os melhores de todos, no nosso sector não há aldrabões, nem práticas ilícitas, corruptores e corruptos, gentalha que não se recomenda?
O sector financeiro, depois da banca nacional, com a complacência do Banco de Portugal, ter custado, por incompetências e por ilícitos, milhares de milhões de euros aos portugueses que, segundo o FMI, andavam por aí a viver acima das suas possibilidades?
O sector empresarial, que, criminosamente, conseguiu destruir algumas das mais fortes e mais poderosas empresas do país, reduzindo-as a pó?
O sector político, onde as notícias de clientelismo e de oportunismos se tornaram tão frequentes, que deixaram de impressionar os portugueses?
O sector judicial, que nos oferece uma visão aterradora da manifesta incapacidade de defender os cidadãos da prática continuada do crime de fugas do segredo de justiça e que se amanceba com uma prática dengosa e prostituída de um novo jornalismo, que gosta de se mascarar de investigador?
O sector do ensino, onde o património maior, formado por alunos e professores é diariamente desvalorizado e desencorajado em nome de disputas políticas com objetivos adjacentes?
O sector autárquico, onde os lóbis proliferam e tão descaradamente marcam a agenda, por influência direta de uma hierarquia que raramente contempla a competência e a tudo sobrepõe interesses de grupos, criando autênticos clubes privados de orientações políticas, religiosas, geográficas ou, até mesmo, sexuais?
O sector da comunicação de massas, hoje quase totalmente destruído no afã de certos grupos que impuseram à imprensa, às rádios e às televisões, uma lógica cega de negócio, anulando a base fundamental da competência e matando um histórico património de credibilidade e de independência?
Diz-me espelho meu, qual osector desta nossa vida pública nacional onde os homens são mais sérios do que no meu?
Pois, mas o futebol está na crista da onda. Tem e-mails e toupeiras, apitos de todas as cores, indícios de corrupção, suspeitas de doping, dinheiros mal lavados, sujeitos mal encarados, presidentes loucos, ditadores de banda desenhada, pistoleiros sem lei, resultados negociados, influências compradas, empresários agiotas, jornalistas tendenciosos, comentadores que chegam de todos os cantos do mundo e que ganham muito dinheiro nas suas cantigas de mal-dizer. Admite-se que sim, que tudo isso seja verdade, mas o futebol é, também, e por outro lado, o sector mais escrutinado deste país onde o sol não ilumina tudo. E por isso, tanto numa lógica de bondade como de maldade, o futebol é o sector mais exposto e, assim, dele se conhece mais o que vai bem e o que vai mal. Porém, ninguém tem o direito de fazer comparações e, sobretudo, ninguém tem o direito de entender que a sua função o coloca numa posição moralmente superior. Nada seria mais imoral.