A razão mora em Braga
Paulo Fonseca não enxerga polémica alguma na contratação de Rúben Amorim por parte do Sporting, nem na verba envolvida no negócio. Defende o treinador da Roma que dez milhões de euros serão fraco gasto se ele conseguir resultados e valorizar jogadores, bastando a venda de um por cem milhões para toda a gente dizer que o emblema leonino fez excelente negócio.
Tratou-se de uma operação bizarra, sem dúvida, mas pretensamente calculada, sem ilusões de enriquecimento fácil nem o risco de uma hecatombe financeira. No pior dos cenários, se faltarem as vitórias e os talentos para vender, o Sporting apenas terá de recuperar o investimento inicial, pelo menos em parte, com a promoção e colocação nos mercados internacionais do mesmo Amorim, desde que este adquira depressa a necessária habilitação para o exercício da profissão ao mais alto nível.
A questão central, porém, já não tem a ver com a discutida transferência do treinador, mas sim com o sagaz raciocínio do administrador leonino Salgado Zenha, o qual considerou ridículo falar-se de atrasos de pagamentos neste contexto da pandemia, como suprema desculpa para o não cumprimento da primeira prestação acordada contratualmente, e não liquidada, com o SC Baga, no valor de cinco milhões de euros, no dia seis de março, nem a trinta do mesmo mês, com moratória.
«Eu também tenho clientes que estão a falhar pagamentos há meses e outros que já me disseram que querem alterar condições de pagamento no futuro», justificou-se.
Muito bem, e o que tem o SC Braga a ver com isso?
Na mesma edição de A BOLA, mas na página seguinte, a palavra escrita, lúcida e eloquente do juiz Sérgio Abrantes Mendes ajuda-nos a compreender a situação: «Por essa mesma razão [fenómeno pandémico], há que ter em atenção (…) todo o contexto jurídico do acordo celebrado entre SC Braga e Sporting a propósito de Rúben Amorim que, muito provavelmente, terá de levar em atenção o disposto no art. 437.º do Código Civil, ou seja, a alteração das circunstâncias em que as partes fundaram a decisão de contratar». E, assim sendo, acrescenta o juiz desembargador, «não deixarão de pontificar os princípios de boa fé que, a posteriori, permitirão atingir o chamado equilíbrio contratual».
Ficamos a saber, portanto, que, apesar de ter falhado a primeira prestação acordada com o clube bracarense, o Sporting poderá estar protegido por lei. O administrador Zenha tocou a mesma tecla, sem entrar em detalhes.
Até aqui, todos percebemos, mas se a administração leonina não tinha intenção de respeitar a primeira data, nem sequer a segunda, por que motivo comunicou à CMVM no dia 5 de março a contratação de Amorim por 10 milhões de euros? Ou seja, não teria sido mais curial informar o SC Braga que não tinha disponibilidade financeira para respeitar o compromisso e sugerir novo acordo, noutros termos e com outras datas, em obediência aos princípios de boa fé que o juiz Abrantes Mendes sobreleva?
Não o fez e tornou inevitável a emersão de uma ideia de traquinice negocial que não assenta bem a quem a protagonizou e que de alguma forma, desculpe-me a ignorância o juiz Abrantes Mendes, se for o caso, julgo acomodar-se mal na proteção do art. 437.º na medida em que à data da comunicação à CMVM (5 de março) o país corria ainda no seu curso normal, o campeonato só foi interrompido dez dias depois e o primeiro estado de emergência só entrou em vigor a 18 de março. Além de que o art. 438.º do mesmo Código Civil refere que a parte que se considere lesada pelo contexto excecional não goza do direito de resolução ou modificação do contrato «se estava em mora no momento em que a alteração das circunstâncias se verificou».
Não parece razoável o administrador Zenha respaldar-se na pandemia para não pagar o que deve com o fundamento de outros também não lhe pagarem. Não só devia ter pensado nisso antes, como lhe competiria (a tal boa fé) abrir o jogo à outra parte do negócio. No seu entendimento sobre este incumprimento legalizado, «o Sporting está a fazer uma gestão séria, tentando mitigar ao máximo o impacto da crise», sem se preocupar, no entanto, com os prejuízos que poderá causar a quem aguarda pelo recebimento do dinheiro a que tem direito. A crise afeta todos e é muito provável que o SC Braga estivesse contar com a entrada na conta bancária dos cinco milhões euros para também ele poder organizar a sua vida.
Tal como as coisas têm sido reveladas, e à luz da ética, a razão só pode estar do lado da parte enganada, o SC Braga e o seu presidente António Salvador. «Perdoar ao Sporting? Os contratos são para se cumprir e, neste tipo de situações, defenderei sempre os interesses ao SC Braga», declarou em conversa com os associados do clube minhoto. Nada mais adiantou sobre o caso, nem valerá a pena, porque as cenas dos próximos capítulos devem seguir nos tribunais.
O único que fica mal na fotografia é o administrador Zenha: mancha o nome da instituição Sporting e não se dá conta que em negociações futuras a sua posição vai ficar debilitada. Daqui em diante, qualquer interlocutor avisado já sabe quem vai encontrar.