A natureza do jogo
O divino, o acaso, o aleatório, a fé, a bola que se perde e o penálti que se falha. O futebol não é um jogo de xadrez!
OS comentadores de futebol, como eu, tendem a cair sistematicamente no erro de julgar que as equipas de futebol que gastam mais dinheiro (ou custam mais) têm obrigatoriamente de ganhar. Pior: se não ganham é porque não são boas nem bons esses jogadores que custaram tanto dinheiro. Esquecemo-nos que o jogo, por mais organizadinho que esteja, por mais pensado, preparado, avaliado, estrategicamente desenhado, planeado e controlado que possa parecer, depende, depois, de tudo o resto, que são os chamados fatores aleatórios. A casualidade do jogo. O imprevisto, o talento, o raciocínio, a decisão. E o contexto. Esse tão importante e essencial contexto, que inúmeras vezes, leva um jogador a render tanto aqui o que nunca foi capaz de render ali.
Não pode a bola ir ao poste? Não pode o avançado escorregar na hora do remate? E não pode o guarda-redes cometer um erro? E não pode o médio perder a bola onde não se esperava? E o defesa cabecear mal? E o árbitro errar na decisão? E não é o futebol um jogo?!
S E o dinheiro o fizesse simplesmente ganhar, estou cansado de o escrever, o poderoso, colossal e competente Manchester City de Josep Guardiola já teria conquistado pelo menos uma vez a Liga dos Campeões. Mas não. Mesmo tendo investido nos últimos cinco anos mais de mil milhões de euros (tomem nota, mais de MIL MILHÕES) não ganhou uma única nos cinco anos de Guardiola.
O mais perto que esteve de o conseguir foi este ano. Mas nem todo o favoritismo que lhe foi atribuído na final, nem todos os craques que tem, nem toda a reconhecida competência de Guardiola, foram suficientes para impedir que o alemão Tuchel e um meio desacreditado Chelsea levassem para casa a orelhuda Taça mais desejada do futebol europeu de clubes.
JULGO que valerá, aliás, a pena determo-nos no que aconteceu, por exemplo, à França neste Euro-2020. Talvez a principal favorita para a maioria dos analistas e adeptos, a seleção gaulesa ficou pelo caminho simplesmente porque um dos melhores jogadores da atualidade não foi capaz de converter uma grande penalidade. Não falhou o remate à entrada da área, ou o desvio de cabeça, ou o pontapé, sobre a esquerda, quando a bola parecia ali mesmo à mão de semear.
Falhou um penálti! Sozinho, sem ninguém a estorvar, sem qualquer empurrão, sem ter de correr 30 ou 40 metros antes de atirar à baliza. Falhou um penálti, quando nos 15 anteriores tinha falhado apenas dois, ambos em 2019. Como pode alguém controlar isso?
O aleatório entrou em ação, porém, bem mais cedo no França-Suíça da última segunda-feira, depois dos suíços, a ganhar por 1-0, terem falhado um penálti para o 2-0, e de os franceses terem chegado, subitamente, a 3-1 e deixado os comentadores, como eu, absolutamente convencidos (ou melhor, com a certeza absoluta) que o jogo estava decidido.
Foi preciso contar ainda com novo golo do benfiquista Haris Seferovic (o bis do avançado a chegar com mais um belo golo de cabeça, por sinal) a fazer o 3-2, mas, ainda assim, incapaz, a escassos sete ou oito minutos do final do jogo, de nos demover da nossa segura convicção de que seriam os franceses a seguir em frente.
O que aconteceu então?
Repare-se bem: mesmo com um homem, entretanto, a mais na linha média para a cobertura do espaço (Sissoko, que substituiu o mais ofensivo Griezmann), a França implodiu quando parecia verdadeiramente tranquila na posse da bola e quando já só faltavam praticamente os minutos de compensação (4’) dados pelo juiz.
E nem de propósito, implodiu porque o melhor jogador em campo, Paul Pogba (que golo ele fez!!!), perdeu a bola mesmo no grande círculo, ela sobrou para o extraordinário Granit Xhaka, que viu o que outros não teriam visto, e a colocou com precisão bem na zona fontal e perto da grande área, no mais fresco Gravonovic, que ainda fez uma maldade a Kipembe antes de rematar, certeiro, para o fundo das redes do incrédulo Lloris. Tudo muito simples, muito bem feito, mas também muito inesperado, surpreendente e improvável. E sem o peso do dinheiro.
NO dia seguinte, no sempre majestoso Wembley, a coisa não foi assim tão diferente. Depois do improvável Luke Shaw ter assistido para o golo de irritante mas muito contundente Sterling, colocando a Inglaterra em vantagem num jogo de uma impressionante intensidade (em tudo), eis que, apenas cinco minutos depois, o fortíssimo Thomas Mueller - um dos atacantes que mais aprecio de todos os que apareceram na última década e meia - conseguiu a proeza de falhar, frente a frente com o guarda-redes inglês, o que parecia um golo absolutamente certo, que daria o empate aos alemães e motivação suplementar para os dez minutos finais.
Mas falhou. Sem que nenhum desenho, estratégia, planeamento, controlo, análise, preparação e controlo pudessem fazer alguma coisa para o impedir de falhar.
E nem cinco minutos mais, foi a vez do grande craque que é Gnabry - tão forte nos duelos - perder a bola também na zona do grande círculo, onde os grandes craques nunca perdem a bola, deixando a equipa suficientemente quebrada, impreparada, desequilibrada e desestabilizada para lidar com aquela imprevista arrancada do improvável Luke Shaw, que conduziu bem pelo espaço liberto até se decidir, à entrada da área, meter a bola, no lado esquerdo, no talentoso Jack Grealish, que cruzou para o fatal golpe de cabeça do indomável Harry Kane, essa espécie, como diz o bom do nosso Vítor Manuel, de melhor defesa-central, melhor médio e melhor avançado do Tottenham, que assim deu a machadada final numa Alemanha que é melhor equipa, tem mais grandes jogadores, parecia refeita do susto com os húngaros mas foi incapaz, desta vez, de controlar tudo ao milímetro como tantas vezes gosta de parecer que controla.
Oincontrolável tem, assim, resultado num Europeu de surpresas (Portugal, França e Alemanha todos em casa, quem diria?...) que promete não ficar com as surpresas por aqui, aposto, agora que dá vontade de recordar um certo Campeonato da Europa de 1992, ganho por um conjunto de rapazes já em férias quando, no último momento, foram chamados a representar a convidada Dinamarca (não qualificada como 2.ª do seu grupo) por impossibilidade (e respetiva exclusão) da Jugoslávia - a viver então a pior guerra europeia da segunda metade do século XX - ocupar o lugar a que tinha direito na fase final da competição, que então se jogou na Suécia.
Se neste Europeu das 11 cidades e dos estádios cheios, meio cheios ou assim-assim, a coisa, no que diz respeito aos resultados em campo, continuar como até aqui, ninguém se admire se voltar a abrir a boca de espanto. É só o o futebol a ter, ainda, mais encanto!
NÃO sei se alguém reparou mas no França-Portugal (ou Portugal-França, nem sei qual era a ordem do jogo), no momento em que Karim Benzema se preparava para bater a grande penalidade inventada pelo árbitro e pelo videoárbitro do jogo, por pretensa (mas inexistente) falta de Nélson Semedo sobre Mbappé, o nosso Pepe começou a dizer ao Rui Patrício para se atirar para o seu lado direito porque, segundo Pepe, o Benzema converteria a grande penalidade para esse lado.
O incansável Pepe (para mim, o melhor jogador de Portugal neste Campeonato da Europa, com Renato Sanches logo, logo atrás), fartou-se de dizer ao bom do Patrício para se atirar para a direita e o bom do Patrício atirou-se para a esquerda, seguindo a própria fé e não a indicação, convicta, do companheiro. Vá lá saber-se porquê.
Resultado: Benzema rematou mesmo para o lado direito do Patrício e o Patrício atirou-se mesmo para o lado esquerdo, o Pepe ficou absolutamente incrédulo sem perceber porque não ligou Patrício ao que lhe disse, e Benzema fez assim o golo, que repôs, naquela altura, para a França uma igualdade que a França bem precisava para afastar o fantasma português que Cristiano Ronaldo, também de penálti, parecia ter ressuscitado. Foi apenas um episódio mais no aparentemente simples mas sempre tão complexo e aleatório jogo que é o jogo de futebol, ao contrário do jogo de xadrez, que parecendo igualmente simples e sendo igualmente tão complexo, é tudo menos aleatório.
Foi apenas mais um daqueles momentos de um jogo de futebol que ninguém, realmente ninguém, pode controlar. Mesmo que julgue o contrário!