A miúda grávida e a tenda

OPINIÃO11.11.201903:00

Era uma vez uma miúda grávida que dormia numa tenda em Lisboa. Por ela passou um jornalista que, absorto com a quebra de rendimento do Benfica, ia especulando sobre qual seria a melhor dupla de avançados. Seferovic e RDT? RDT e Carlos Vinícius? Carlos Vinícius e Chiquinho? Chiquinho e Seferovic? E nem olhou para a miúda grávida que ia procurando restos de comida enquanto afagava a barriga. Por ali passou, entretanto, solitariamente agarrado ao telemóvel, um doutor, pensando na razão pela qual o FC Porto penalizou, de uma assentada, quatro jogadores.

E se na festa estivesse a equipa toda?, pensou. E nem se apercebeu da presença da miúda grávida de mão estendida em busca de uma moeda e a disfarçar a barriga de nove meses. A seguir, passou por ela um ardina sem se dar conta de que, por ali, andava  a miúda de barriga cheia e mente vazia e doente. O ardina pensava na possibilidade, avançada por Silas, de passar de um sistema de 3x5x2 para um 4x4x2 losango ou para um 4x3x3 no decorrer de um jogo, sempre enquanto o diabo esfregava um olho. Seria possível?, pensava com uma resma de jornais debaixo dos braços. A miúda grávida, sempre de cabeça baixa, mão estendida e barriga encolhida, esgravatava agora nos caixotes do lixo em busca de pedaço de pão e de  gotas de água perdidas no fundo de uma garrafa. A seguir, apareceu um economista. Que achava estar sozinho. E, de facto, estava, pois nem ele nem a miúda davam pela presença um do outro.

O economista pensava na questão transcendental sem a qual o mundo não pula e avança, como escreveu o poeta. Quem é melhor: Ronaldo ou Messi? O poder de fogo do português e os seus golos em catadupa ou a arte filigranada do argentino e o seu incrível virtuosismo? A miúda grávida, de barriga cheia e mão pedinte, embrulhada em jornais para suportar o frio, a dor e o futuro, indiferente à dupla de avançados do Benfica, às festas de argentinos e colombianos, aos sistemas de Silas, aos dois astros do futebol mundial e, sobretudo, ao jornalista, ao doutor, ao ardina e ao economista, dirigiu-se, então, ao  contentor. Minutos depois, de barriga vazia, cabeça baixa e arrastando os pés, entrou na tenda. Enquanto isso, eu, tu, ele, nos, vós e eles, seguíamos com as nossas vidinhas de trazer por casa, talvez pensando apenas na sequência tremenda de golos de Pizzi, na ousadia de Sérgio Conceição em punir quatro de uma assentada ou no desalento de Luís Neto após a substituição com o Belenenses ao minuto 33, sem nos darmos de conta de que, enquanto pensamos que o Mundo pula e avança, ele, de facto, está parado e cristalizado. E cristaliza cada vez mais sempre que alguém aponta o dedo a outro sem saber o que se passa na sua cabeça, na sua barriga ou, sequer, no seu olhar. Ou na sua tenda.