A mãe do árbitro
A história contou-a Eduardo Galeano no seu Futebol: sol e sombra: que, ao regressar ao Equador após exílio, Jorge Enrique Adoum (esse, o autor de Entre Marx y Una Mujer Desnuda) cumpriu ritual obrigatório em Quito: ir ver o Aucas jogar. Andava-se pelos anos 60 e, ao entrar no estádio, viu-o cheio e fervilhante. De repente, cobriram-se as bancadas de silêncio. Com os espectadores de pé foi-se espalhando, pelos microfones, a voz entaramelada de dirigente do Aucas: elogiando o árbitro por estar ali «cumprindo o seu dever na mais triste das circunstâncias». Com ele, o árbitro, acabrunhado, no centro do terreno - percebeu-se lágrima furtiva a correr-lhe pelo rosto. Quando o dirigente se calou, a multidão bateu palmas, o apito soou - e Adoum murmurou (de si para si):
- Como as coisas mudaram. Antes, as pessoas só queriam saber dos árbitros para lhes chamar filhos da put#!
Ao quarto de hora, golo do Aucas pôs o estádio em ebulição. A euforia transformou-se em ira ao verem-no anulado e da multidão soltou-se, insano, o rugido:
- Órfão de uma put#... órfão de uma put#...
Era, claro, expressão daquilo que o próprio Galeano já descobrira, poético:
- No futebol, o fanático é o adepto no manicómio.
(Ou então daquilo que Tchekov também descobrira, menos poético:
- Errar é humano mas ainda mais humano é atribuir o erro aos outros.)
Tudo isso se percebe, ainda hoje. O que me custa mais perceber é ver o que em Portugal se transformou em anormal normalidade: o fanático a ser o dirigente no manicómio (e desumano ser, nele, o atribuir o erro aos outros - ou seja: aos árbitros, quando perde). E pior: que, nas horas e dias que se seguem, trupes de ventríloquos lhes repitam, despudorados, os despautérios e os julgamentos seletivos - ou que bandos de arrivistas os acolitem na passagem da palavra como a verdade absoluta que é, amiúde, a mentira conveniente (ou, então, a insinuação em delírio, a esquizofrenia em frenesim...)