A improvável vitória de quem perdeu

OPINIÃO22.06.201904:00

Faz hoje 50 anos. Meio século é, apesar de tudo, contemporaneidade na medida pouco exata da vida humana. Mas a História, porém, tem os seus ritmos e os anos sessenta aceleraram as gerações mais jovens, tornaram-nas particularmente responsáveis e comprometidas com o futuro. A razão era a mais essencial possível: nenhum jovem, naquela altura, queria mais aquele tempo presente. O mundo ocidental renascia de ideias e de sonhos com o Maio de 68 em França, com a luta contra a guerra do Vietname, com a cruel batalha pela liberdade em países como Portugal e Espanha, com o direito à autonomia no feminino.


Por cá, o futebol era, demasia das vezes, parceiro silencioso de um regime vestido de circunspectos fatos cinzentos e de nós de gravata demasiado apertados. Mas havia uma aldeia que resistia ao conformismo, ao infortúnio de um destino virado para trás. Chamava-se Académica. O clube da academia, dos estudantes, da capa e batina tinha-se tornado, também, o clube de uma cidade que sentia orgulho na diferença. A Académica devia a sua identidade única a homens de cultura que não diabolizavam o futebol. Eles percebiam, ao contrário de muitos intelectuais da capital, que o futebol era uma vítima encarcerada no dever do respeito reverencial pelos senhores da ideia única.
Por isso, a Académica formou politicamente muitos homens do futebol e desportivamente muitos cidadãos livres, muitos intelectuais firmes de princípios e valores democráticos.


Quando a crise académica rebenta em Coimbra, nos finais dos anos 60, o país do regime que se pensava sólido como o betão estremeceu perigosamente. As manifestações de risco, que levaram à prisão muitos estudantes em todo o país, tinham por razão visível reivindicações sobre a estreiteza do ensino em Portugal, mas todos sabiam, estudantes e governo, que o que estava verdadeiramente em causa era a liberdade contra a clausura, a dignidade contra a humilhação, a autonomia das mulheres contra a sua subjugação, a paz contra a guerra, o sol do conhecimento contra as trevas da ignorância.


Era isto que estava em causa e foi isto que a Académica defendeu, faz hoje 50 anos, na final da Taça com o Benfica, no Estádio Nacional.
Informado pela polícia do regime de que se iria dar uma grande manifestação da academia com o apoio explícito dos jogadores da Académica, o Presidente da República, Américo Tomaz,  viu-se forçado a não marcar presença na tribuna de honra do Estádio, o que acontecia pela primeira vez no seu consulado; e a RTP teve de encontrar uma desculpa esfarrapada para cumprir a ordem política de não fazer transmissão direta do jogo.
O Benfica viria a vencer essa final, já no prolongamento, por um inevitável golo de Eusébio, mas a festa, depois da entrega da Taça, estendeu-se às duas equipas, porque se o Benfica tinha ganho o jogo da final, a Académica tinha ganho outro desafio mais importante: o sentido reconhecimento de todos os democratas portugueses.