A importância relativa das coisas
Portugal inteiro anda distraído com as falas dos deuses das pequenas coisas. Como também dizia Pacheco Pereira, o país não gasta um segundo a pensar em algo de verdadeiramente importante, mas gasta-se e desgasta-se horas a fio a discutir o sexo dos anjos da política e da sociedade que, como se sabe, juntamente com os anjos do futebol, são os que mais perto andam de se enganarem na porta e, incautos, entrarem no Purgatório, senão mesmo no inferno.
O futebol, porque entra na reta final de mais uma época, está a ferro e fogo. Tudo porque há decisões a chegar. O Benfica e o FC Porto, que lutam desalmadamente pelo título de campeão, como se este fosse o título único e definitivo e não houvesse amanhã, levam a populaça ao auge da histeria coletiva. Para o Benfica, se o ganhar, será o 37.º título. Para o FC Porto, se lá chegar, será o número 29. Nada de verdadeiramente histórico acontecerá em qualquer das circunstâncias, mas ambos os clubes lutam como se estivesse em causa a sua vida ou a sua morte, e, por essa perspetiva do exagero, tudo e todos envolvem, procurando influenciar os seres influenciáveis, que são manifestamente muitos, com destaque para uma arbitragem poucochinha, sem ídolos, sem adeptos, sem categoria e, também por isso, sem outros defensores que não sejam os da mesma confraria.
Os discursos atingiram o topo da obscenidade intelectual; os meios encontrados para se atingirem os fins dizimaram toda a ética e moral públicas; a tentativa de ganhar a qualquer preço envolveu uma política de comunicação (inclui, desgraçadamente, jornalistas) que arrasa qualquer ideia de inteligência viva nos pretensos recetores de conteúdos e mensagens; alguns tribunais plenários entretanto criados e constituídos por ex-árbitros parecem ter aprendido com as piores práticas dos bolorentos tribunais do tempo da ditadura, quando os juízes decidiam contra os que não seguiam respeitosamente o regime, sem quererem saber da verdade dos factos.
Visto de dentro, ou de perto, deste pequeno mundo de loucos e de seres despensantes ou, até mesmo, impensantes, o agregado em que vive atualmente o futebol é caótico e contribui, decisivamente, para um dramático défice cultural do povo e para um não menos dramático exemplo didático para os jovens.
O ridículo maior da questão é que todos estes danos, provavelmente irreversíveis, são causados em nome de um simples título de campeão de futebol, por dois clubes que já têm dezenas de títulos de campeões de futebol e que, segundo demonstra a história, não sobreviveram melhor ou pior quando os não conquistaram.
Na verdade, é a evidência que o demonstra, o que está verdadeiramente em causa será bem menos o interesse coletivo do clube, ou a sua vã glória e, muito mais, o interesse particular e o egocentrismo dos seus dirigentes.
Vendo as coisas numa perspetiva relativa da sua importância real, percebe-se melhor o que dizemos. Talvez seja aconselhável sair da arena das batalhas onde tudo acontece e fazer um pequeno esforço para ver de longe o que se passa e podermos pensar à luz de uma racionalidade sem complexos nem preconceitos.
Se formos capazes disso, percebemos rapidamente a importância muito relativa do significado de mais um título de campeão, por parte de quem já está tão habituado a conquistá-los.
O que se vende aos adeptos não é muito mais do que ilusão da importância de uma vitória. Tal como Saramago, certa vez, lembrou a Luís Figo, o que é mais reconfortante numa derrota é saber que nenhuma derrota é definitiva. Mas uma vitória também não.