A força do sócio anónimo

OPINIÃO20.07.202107:05

Rui Costa teve a coragem de não permitir que a nau encarnada ficasse à deriva e com o leme nas mãos de um qualquer oportunista de ocasião

C OMO não tenho poderes mágicos para entrar no pensamento de Rui Costa, ignoro se será sua intenção candidatar-se à presidência do Benfica nas próximas eleições, anunciadas para os últimos meses do corrente ano,  em período que já não perturbe  a preparação da presente temporada desportiva, nem interfira na seguinte. Uma medida que a todos agrada: aos que estão, dando-lhes tempo para arrumarem a casa, e às presumíveis oposições,  sem  pressa de se chegarem à frente.
Neste interregno pacificador, emerge, porém,  a figura  do presidente interino, o qual, independentemente da forma como se apresentou, fria, até deselegante, como escrevi, teve a coragem de não permitir que a nau encarnada ficasse à deriva e com o leme nas mãos de um qualquer oportunista de ocasião.    
A firmeza de Rui Costa terá surpreendido quantos viam nele o que ele não é há muito tempo, inexperiente e fácil de manipular.
Não sei se a candidatura está nos seus planos, sublinho,  mas sei que, a partir de agora, se tornou no único alvo da maledicência por parte de quem  se quer aproveitar da renúncia de Luís Filipe Vieira   para chegar ao cadeirão  presidencial  e usufruir da obra feita; e do resto, que é muito interessante, reconheçamos.

O autoproclamado presidente, ou o que se quiser chamar-lhe, fez o que fez respaldado em ata de reunião de Direção de 9 de novembro de 2020, conforme noticiou o jornal A BOLA, na edição de 12 julho.  Não se trata de nenhum tique monárquico ou de perpetuação de poder, como já ouvi, tão somente a convicção de quem acredita, sempre acreditou, ser Rui Costa a pessoa mais bem preparada para prosseguir a empreitada, com falhas, indecisões e oscilações, é certo, e recolocar o emblema da águia no lugar que lhe pertenceu, durante décadas, entre a elite do futebol mundial. Por isso,  talvez não seja má ideia ler este sinal  do destino que planta um campeão europeu na linha de liderança do Benfica que há muito luta, precisamente, pela recuperação do  seu estatuto de clube grande da Europa,  estatuto esse alcançado na maravilhosa década de 60 do século passado e exibido até 1990, quando o perdeu.
Dentro de duas semanas, o Benfica tem o primeiro teste na 3.ª pré-eliminatória de acesso à Liga dos Campeões, objetivo  prioritário, do ponto de vista desportivo e financeiro. Em razão do sucesso ou do fracasso desta operação vai desenhar-se o futuro próximo do clube, é inevitável, embora considere desajustada a tentativa, já em esboço, de colar Rui Costa ao desempenho da equipa de futebol profissional, quando essa responsabilidade cabe por inteiro ao treinador e, no limite, a quem o escolheu, e toda a gente sabe quem foi.
As oposições estão à espera de  cavalgar essa ideia  malandra e vão pedir aos deuses para que Jorge Jesus se baralhe nas táticas e nas estratégias, o que não é incomum. 

N ÃO será exatamente assim, nem os sócios do Benfica serão diferentes dos outros clubes. No entanto, trago à colação dois episódios que contrariam a  teoria  de que o adepto/sócio só reage em função do resultado:
Maio de 1981 (Lajos Baroti), o Benfica foi campeão nacional, proeza que perseguia desde 1977 (John Mortimore). Festa de arromba na Luz. Ferreira Queimado era o presidente e sentiu-se adorado pela família encarnada. Cinco dias depois houve eleições, mas quem ganhou foi Fernando Martins, o opositor. Os sócios não perdoaram  as cenas de pancadaria com a polícia nos festejos a seguir ao jogo com o Vitória de Setúbal e que provocaram dezenas de feridos.  Relatos da imprensa da época atribuem a responsabilidade a Gaspar Ramos, outra versão, contada por Mário Belo e por mim testemunhada,  aponta o dedo a Domingos Claudino, sempre avesso a invasões de campo por causa da relva que tratava com muito carinho. A indignação coletiva foi mais forte do que os cinco golos que contribuíram para a  Grande Reconquista, como titulou A BOLA na sua primeira página (25-5-81)
Março de 1987, Fernando Martins, o presidente que fechou o Terceiro Anel, chegou a uma final da Taça UEFA  e venceu dois Campeonatos foi derrotado pela vontade dos sócios à porta do terceiro título por ter subestimado uma convivência turbulenta e manifestada  em assembleias polémicas e conflituosas. Como a bola entrava nas balizas adversárias e a equipa ganhava, Fernando Martins confiou na reeleição, não se desse o caso de, na data da decisão, já noite cerrada, começarem a chegar aos Restauradores autocarros com sócios do norte do País para votarem, coisa nunca vista e magnificamente organizada pelo empresário Manuel Barbosa. Quem assistiu, lembra-se das longas filas em redor dos quarteirões da Baixa lisboeta para acolher aquela multidão de gente anónima, sofredora e que, pela primeira vez, por não viver na região de Lisboa, nem frequentar os espaços de convívio e de influência  do Estádio da Luz, impôs, pela revolta, um novo presidente: João Santos.
Ganhar não é a cura para todas as  preocupações do adepto. Talvez no estádio, dominado pelas emoções do jogo, mas quando é chamado a  intervir na vida do seu clube rege-se por aquilo que os seus sentimentos mais profundos e genuínos lhe ordenam.  É a força do sócio anónimo, na qual que Rui Costa se deve amparar.  

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