A fábrica de sapatos

OPINIÃO15.05.202004:00

Não sei, e na verdade julgo que ninguém sabe realmente ao certo, o que vai ser ou deixar de ser o já muito falado (mas ainda não cumprido) apoio do Estado aos media. Ficámos apenas a saber, através de decisão governamental, a ideia de o Estado concretizar esse apoio através de investimento em publicidade institucional nos diferentes meios de comunicação social, na ordem dos 15 milhões de euros, como forma de ajudar (e compensar) os editores nacionais neste particular momento de tão elevada perda de receitas, numa crise que se arrasta, porém, há uns anos  devido, sobretudo, à transferência da maior fatia da publicidade para o domínio de gigantes multinacionais, como a Google e o Facebook.

Julgo, por outro lado, que não terá parecido mal à generalidade dos editores a decisão de se concretizar esse apoio através da compra da tal publicidade institucional. O Estado apoia adquirindo um espaço, os editores vendem-no (talvez até com desconto), recebendo, assim, algum do apoio que precisam. Ninguém dá nada a ninguém e fica tudo de consciência tranquila.

Veremos se assim vai acontecer e veremos se, no fim de contas, não vão ser os media a fazer um favor ao Estado - vendendo espaço a preço de saldo - em vez do Estado fazer o favor de atribuir algum do (indispensável) apoio aos media.

Ainda assim, muito pior do que aqueles (como os deputados do Bloco de Esquerda) que defendem que os jornais desportivos não devem receber qualquer apoio porque, pelos vistos, não fazem falta nenhuma numa sociedade que não precisa de desporto, e muito menos de futebol, para nada, pior do que esses, dizia, só mesmo o líder do PSD, que teve a inqualificável ideia de comparar a uma fábrica de móveis ou de sapatos a necessidade de um jornalismo independente, plural e livre, vital e essencial à democracia, capaz de informar, escrutinar e servir as opções de uma sociedade que se deseja mais humanista, mais tolerante, mais justa, mais inclusiva, sem preconceitos, xenofobias, fanatismos ou autoritarismos.

É preciso compreender que os ataques aos meios de comunicação, mais do que um ataque ao jornalismo, são ataques sempre particularmente ameaçadores para a democracia, porque atacam a liberdade de expressão e atacam, portanto, um dos mais fundamentais direitos do Homem.

Não compreender a necessidade de apoiar os meios de comunicação num momento de particular dificuldade económica como este (e não se trata, repito, de dar nada a ninguém) e não compreender que os meios de comunicação são de igual importância (sejam eles de informação social, económica, política, cultural ou desportiva) é ignorar os valores e a importância para as democracias de uma comunicação social livre.

Antes de se tornar o terceiro presidente dos Estados Unidos da América, Thomas Jefferson, um dos pais da nação americana e principal autor da famosa declaração de independência, escreveu não ter qualquer dúvida em escolher entre a opção de ter no país «um governo sem jornais ou ter jornais sem governo». Escolheria a segunda sem qualquer hesitação.

Pode, pois, alguém admitir que se compare o jornalismo a uma fábrica de sapatos?  Pode alguém ignorar a importância de se olhar com olhos de ver para a crise que afeta os meios de comunicação como se um país fosse melhor país sem a diversidade de jornais, revistas, rádios ou canais de televisão?

Pode alguém admitir que o Estado descartasse, porventura, os jornais desportivos como se os jornais desportivos fossem filhos de um jornalismo de segunda e promotores de uma realidade desprezível para a sociedade?  

O jornalismo e a liberdade de imprensa (bem como a concorrência entre meios de comunicação) são vitais no desenvolvimento de qualquer país. Não são perfeitos, mas são vitais. Li há tempos o que também nós, jornalistas, precisamos de saber, que somos humanos e cometemos erros, e que sermos corrigidos é fundamental para o nosso trabalho.

Mas os jornalistas não são inimigos da sociedade, como alguns parecem, por vezes, ter a tentação de considerar, criando a ideia de serem farinha do mesmo saco as tão em voga «fake news», facilmente difundidas nas redes sociais, com as verdades reveladas pelo jornalismo que os diferentes poderes nem sempre gostam de ouvir.

Voltei hoje a um tema que já aqui me trouxe alguma revolta a meio de abril porque em situações como a que vivemos não podemos ficar nos bastidores. Os meios de comunicação são fundamentais para ajudar as sociedades a escrutinar os poderes públicos e a governação. E, portanto, os poderes públicos têm obrigação de auxiliar os meios de comunicação que vivem, no caso português, talvez uma crise sem precedentes, para que possam ajudar a fazer melhor esse escrutínio.

Considerar esse auxílio inaceitável também é perigoso para a alma da democracia.