A exigência

OPINIÃO30.10.202002:18

Creio que a reeleição de Vieira como presidente do Benfica se ficou a dever, pelo menos em boa parte, a um sentimento de gratidão dos benfiquistas. E parece-me justa essa gratidão. Pelo que se conhece da história do futebol português, não foram muitos os dirigentes capazes de fazer num clube o que Vieira fez no Benfica. E com todos os erros que possa ter cometido (e cometeu), foi ele que salvou o Benfica de profundo apagão neste século e foi Vieira que transformou o clube numa empresa de topo a nível mundial.
Agora que acaba reeleito, supostamente para um último mandato como o próprio anunciou, Vieira ganha ainda mais responsabilidade, no sentido em que deve olhar para a gratidão que muitos benfiquistas lhe dedicaram com a noção do verdadeiro significado dessa gratidão e com o respeito que ela merece.
A votação em Vieira não deixou, na verdade, qualquer dúvida. Sim, não venceu esta eleição com o expressivo conforto com que venceu eleições anteriores, mas ninguém pode, ainda assim, suscitar qualquer dúvida sobre o peso de quase 65 por cento dos votos, ainda por cima numa eleição com a grandeza desta eleição para a presidência da maior instituição desportiva nacional.
Vieira ganhou em toda a linha. Ganhou em todas as faixas etárias. Ganhou em todas as categorias de votos. Não sei se ganhou em todo o lado onde os benfiquistas puderam votar, talvez sim, talvez não, mas essa é sempre a conta menos importante na hora das conclusões que sempre se procuram tirar de uma eleição tão participada e tão concorrida, porque não é todos os dias que se veem, em Portugal ou no mundo, três candidatos tão ativos na corrida à presidência de um clube com a grandeza, a dimensão, o impacto social, a força e a paixão do Benfica, sem paralelo, nessa medida, no nosso País, mas também um caso de natureza excecional à escala mundial, se tivermos em conta o tamanho e a pobreza de Portugal.
Será, certamente, já um cliché, mas é por isso mesmo que, na realidade, o grande vencedor da eleição desta quarta-feira não foi sequer Vieira, mas verdadeiramente o Sport Lisboa e Benfica, porque ninguém, nem mesmo o mais otimista dos benfiquistas, se atreveria a prever que a eleição para a presidência de um clube português, mesmo que esse seja o maior dos clubes portugueses, pudesse, fosse quando fosse, nem num sábado de sol, quanto mais numa quarta-feira de outono, contar com quase 40 mil votantes, com civismo absolutamente irrepreensível, organização fantástica e notável dimensão, se pensarmos na modernidade e democraticidade com que vemos os sócios do Benfica poderem, hoje, votar em qualquer que seja a parte do mundo onde se encontrem. Impressionante!
Pode o reeleito líder olhar para os quase 35 por cento dos votos em João Noronha Lopes com indiferença? Poder, pode. Mas não deve. Um líder de um grande clube só pode evitar fraturas e só pode, portanto, fazer tudo o que estiver ao seu alcance para unir e nunca para separar. Vieira foi, nesse sentido, claro no discurso de vitória e deve acreditar-se nessa anunciada intenção do presidente reeleito, porque, em boa verdade, se houve um líder que fez tudo para unir o Benfica, que fez tudo para respeitar os sócios e desenvolver as Casas do Benfica - o que elas eram antes de Vieira e o que são hoje!... -, que fez tudo para respeitar as glórias do passado, a memória, a história e a mística da águia, esse líder foi indiscutivelmente Viera, independentemente das críticas que lhe possam dirigir, os erros que lhe possam apontar, ou as práticas, menos aceitáveis ou menos compreensíveis que lhe possam ser imputadas.
Não seria imaginável, aliás, que os sócios do Benfica pudessem permitir que se acabasse por fazer com Vieira o que, no fundo, foi feito pelos sócios com Vale e Azevedo, afastando-o, num dia igualmente inesquecível, de uma liderança que não trazia nada de bom ao Benfica. Não seria imaginável e não seria, realmente, justo que o fizessem. Vieira, deve sublinhar-se, não apenas salvou o Benfica como lhe devolveu a grandeza que a grandeza da sua massa associativa justifica e exige.
Esse sinal de ingratidão não quiseram os benfiquistas permitir que fosse dado, e talvez por isso tenham quarta-feira saído surpreendentemente de casa quase 40 mil sócios do clube para a mais impressionante eleição desportiva em Portugal.
Creio também que pode muito bem o Benfica dar os primeiros passos para a mudança que muitos esperam e desejam na globalidade do futebol português se pensar em Rui Costa como um potencial futuro presidente. E talvez com Rui Costa a liderar o Benfica, Vítor Baía a liderar o FC Porto, Luís Figo ou mesmo Cristiano Ronaldo, quem sabe, a liderar o Sporting, o futebol português possa, finalmente, vir a regenerar-se em toda a sua expressão e possa, por fim, ganhar de uma vez por todas estrutura, a todos os níveis, de competição realmente mais saudável.
Lembro, a propósito, que foi já o Benfica de Vieira o pioneiro dessa visão, quando Vieira, em 2008 (há mais de dez anos, não foi ontem!!!), convidou Rui Costa a comandar o futebol do Benfica logo após ter terminado, na Luz, a carreira como jogador. Então por natural inexperiência, talvez imaturidade, compreensível necessidade de aprender, Rui Costa pode não ter feito tudo bem, mas creio ter feito sempre tudo de coração aberto e, sobretudo, paixão e espírito benfiquista que o levam a ser incapaz de trair a alma do clube.
Mas hoje, doze anos depois, Rui Costa estará seguramente mais apto e melhor preparado para o que será, sempre, e em qualquer circunstância, o grande desafio da sua vida desportiva, se os benfiquistas, como muitos parecem já desejar, vierem a confiar-lhe, porventura já daqui a quatro anos, a responsabilidade de liderar o Benfica.
Doze anos depois, aliás, parece seguir o FC Porto caminho semelhante, com a significativa chegada de Vítor Baía à administração da SAD do clube, onde nunca antes tinha entrado qualquer antigo jogador portista. Antigos jogadores nas esferas do futebol dos clubes sempre houve, sempre! Mas antigos jogadores nos lugares de decisão, que me lembre, apenas Rui Costa no Benfica.
Registo, a propósito, e já o devia ter feito há tempos, o regresso aos azuis e brancos de uma figura com a carreira notável, o inquestionável amor ao clube, o currículo absolutamente ímpar e a enorme vontade de jogar, agora por fora, com a categoria, a classe e o talento que tinha  no campo, como é, sublinho, Jaime Magalhães!
Será, na minha opinião, aquele um dos caminhos para que o futebol português possa, dentro de poucos anos, transformar-se, seguindo, como é o caso exemplar do Bayern de Munique, modelo de liderança entregue a verdadeiros homens do futebol - no Bayern, como é sabido, a liderança vai, sucessivamente, passando de antigo jogador para antigo jogador, de Franz Beckenbauer para Rummenigge, agora de Rummenigge para Oliver Kahn... Com um novo tipo de dirigismo, num futuro próximo, talvez cheguem as desejáveis novas práticas, nova respiração e novas e mais saudáveis formas de relacionamento, e talvez possa, então, chegar também um novo espírito e um novo modelo de competição, estruturalmente mais à imagem do que de melhor tem o desporto profissional norte-americano, mas também algumas das grandes ligas europeias (muito em particular, a inglesa e alemã).
No caso do futebol português, muito do que ainda hoje vivemos só muda quando os clubes não precisarem tanto de ganhar dentro do campo para ganhar dinheiro. Dizendo de outra maneira: uma competição será tanto mais saudável quanto os clubes todos garantirem o seu dinheiro antes de terem de jogar. Simplifico: na NBA, por exemplo, antes de cada jogo já toda a gente ganhou dinheiro; e o jogo é só para discutir um resultado entre as equipas e envolve apenas jogadores, treinadores e árbitros.
Ora, em Portugal, os clubes precisam mesmo de ganhar o jogo para aspirarem a ganhar dinheiro. E ainda por cima, como não podem aspirar a ganhar dinheiro que se veja no mercado interno, e sem mercado para três ou quatro grandes clubes, os dois principais rivais do momento (Benfica e FC Porto) têm mesmo de ganhar no campo para poderem aspirar a ir ganhar dinheiro lá fora. E quando se precisa mesmo de ganhar, faz-se, às vezes, coisas que não se devia.
Não é de um dia para o outro que podemos esperar eliminar todas as  nuvens do futebol português. Dará trabalho, exigirá determinação, bom senso, muita vontade, ausência de egoísmos. Exigirá também que todos percebam que não ganharão nada sozinhos e que apenas serão mais fortes quanto mais fortes forem todos os competidores.
A ideia de eventual Superliga europeia será, porém, sempre prejudicial a este desejável equilíbrio na competição nacional, é verdade, e desde logo porque se vier - o que duvido - a haver lugar para Portugal nessa superliga, será, certamente, e quanto muito, para um único clube, o que provocará de imediato titânica luta, sobretudo entre Benfica e FC Porto, entre a maior dimensão e o maior mercado de um, o Benfica, e o mais notável palmarés internacional de outro, o FC Porto. Oxalá não se chegue a esse ponto e não vá para a frente essa peregrina ideia dos mais poderosos.
O futebol assim o exige!