A escolha dos belenenses
Dentro de pouco mais de dois meses, o Clube de Futebol Os Belenenses fará 100 anos. Não precisou de reinventar a sua História de rapazes de Belém inconformados com a migração de seus conterrâneos para Benfica, não precisou de somar anos para fins comerciais ou outros. Cem anos tem a construção de um clube belenense, pensado e realizado por belenenses que, nessa altura, envolvia, também, a rapaziada da Casa Pia e as generosas e pobres gentes da «colina de cristal» de que falava o Batista Bastos, também ele grande belenense e que debruçava a Ajuda sobre vistas largas do Tejo.
Diz a história oral do clube que na arquitetura da equipa de futebol, pararam, os estrategos, na dúvida do emblema. A cor seria azul, mas o símbolo estava em discussão. Surgiram ideias óbvias, desde as caravelas quinhentistas à emblemática Torre de Belém. A reunião estava demorada e decorria em casa de médico famoso, o dr. Virgílio Paula, que tinha ganho entusiasmo na iniciativa. Foi então que a esposa do médico, nunca tida nem achada em assuntos de bola, se terá timidamente lembrado de uma sugestão: «E se fosse a cruz de Cristo?». Temente a Deus, frequentadora assídua dos Jerónimos, atreveu-se a fazer ouvir a sua ideia. E assim ficou.
Que ninguém tenha a mais pequena dúvida: é esse clube nascido em 23 de setembro de 1919 que mora no Estádio do Restelo, com vista para o mar, construído a suor e sangue de operários e ao estrondo do dinamite, que era o único modo de abrir caminho na pedreira, que chorou a precoce morte de Pepe, que glorificou Matateu e Vicente, que resistiu heroicamente à colonização dos outros dois grandes de Lisboa, o clube que meu pai tão generosamente serviu, que, hoje, luta pelo regresso à dignidade da sua própria História.
Foi essa certeza, essa visão honrada da vida, essa teimosia idealista, essa consagração de uma certa ingenuidade cativante, essa demonstração de revitalidade coletiva, essa riqueza de se ter, enfim, um objetivo por que vale mesmo a pena lutar, que levou à decisão de uma maioria avassaladora. Serão os outros, os que ficaram, os que não aceitaram a ideia de recomeçar do zero, menos belenenses ou traidores dos ideais belenenses? Não creio, nem me atreveria, alguma vez, a afirmar a superioridade de uma atitude, de um comportamento, de uma escolha em relação à outra.
Nem isso interessa. Cada belenense fez a sua escolha. Acho que Patrick Morais de Carvalho, o presidente do clube, o tal que irá comemorar 100 anos em setembro próximo, tem razão quando diz, alterando, aliás, um discurso anterior bem mais rígido e dorido, que a única coisa que deseja é que cada qual siga o seu caminho. O Clube de Futebol Os Belenenses percorrerá o caminho das pedras para se fazer regressar ao futebol maior; e a Sociedade Anónima, que, entretanto, já teve de mudar de casa de morada de família, já teve de mudar de equipamento, já teve de mudar de símbolo e terá de mudar de nome, percorrerá, também, o seu próprio caminho, restando-lhe assumir a realidade e deixar de pensar que, se for amparada pelo corporativismo dos seus pares, na Liga, alguma coisa verdadeiramente importante se alterará na verdade histórica.
Percebo que poderá tornar-se um bocado assustador pensar-se em como uma sociedade anónima poderá mobilizar adeptos, mas poderá, sempre, mobilizar acionistas, que é mais de acordo com a natureza de um projeto empresarial que, com legitimidade, também fez a sua escolha de romper com a vontade efetiva (não a que foi desenhada nos labirintos jurídicos da construção social) dos sócios do clube. Que cada um siga a sua vida. E, se possível, com sucesso.