A dança

OPINIÃO01.03.202003:00

Quando um corpo dança não há combate mais ridículo que colocar de um lado os guerreiros da cultura e, do outro, os animais pouco civilizados.
Dançar não é um processo mental, nem um processo de civilização. Nenhuma cidade dança; dançar é desenvolver a parte orgânica; e, considerada pela Economia, é um erro, a dança.


Mas não, não é um erro: a dança é acertar em cheio no que já fomos: animais com muito tempo; animais que não se importam de adiar, de esperar; animais sem utilidade nos bolsos.

Peso, leveza

2Trata-se da questão da leveza versus peso. Dançar é dar no corpo mais importância à leveza que ao peso, pois há como que dois instintos: o que nos puxa para baixo e o que nos faz saltar. Do peso entendemos desde cedo que vem uma força definitiva, uma força que marcará o ponto final da nossa longa frase que é existir. O peso dirá a última palavra do corpo. O corpo sem vida cai, não sobe. Cai, não salta.
Dançar é, pois, usufruir estes momentos em que ainda não caímos no ponto final, enquanto não somos totalmente peso, enquanto podemos resistir ao peso (estar vivo é resistir ao peso); enquanto temos esta outra força podemos (devemos) dançar.
E, por isso, uma dança pesada é uma manifestação de incapacidade para existir intensamente. É estar vivo como se já se estivesse morto; é combater a morte com a arma apontada para si próprio. A dança com peso é uma dança depressiva, que manifesta a inabilidade, a inaptidão para o salto.
Enquanto podes saltar, salta - diz quem dança levemente.

Matéria

3Perturbar uma certa tendência para a escultura, uma certa tendência para a imobilidade, eis o que faz a dança. Um corpo que é músculos e carne e ossos tem tendência a definir-se como um corpo sólido. Dançar é, pois, interferir no estado dessa matéria que é o corpo. É lembrar ao corpo que não é tão sólido como parece quando visto do exterior.
Dançar, a princípio, suavemente, é infiltrar elementos de um outro estado físico: o corpo é matéria sólida, sim, mas também líquida; é uma coisa que se pode espalhar pelo espaço como a água, quando o copo que a envolvia se parte no chão. Também assim, então, o corpo: rodeado de uma massa que o protege e o impede de se derramar, sim, mas o corpo também tem essa fragilidade das coisas líquidas. E é a dança que permite recordar essa fragilidade, esse outro estado da matéria humana.

Equilíbrio, desequilíbrio

4Toda a dança é assunto de um desequilíbrio e de uma tentativa para endireitar. Endireitar algo que estava torto, errado. Dançar é no fundo corrigir um erro, um desacerto inicial que bem pode ser o facto de se existir como se existe: com essa certeza inflexível da morte.
Assim, aceitar o erro é um modo de exigir a continuação do movimento: como não atingimos a perfeição continuamos; como não atingimos a perfeição somos quase imortais. A perfeição toma assim o sentido de fim, de momento a partir do qual nada mais há para a frente; a perfeição como fim da linha. É a morte, no limite.
Dançar é, pois, adiar a morte. Introduzir consecutivamente intensidades erradas; intensidades que não dão conta certa; sobram restos, vestígios, que obrigam a acertos infinitos e a um adiar constante.
Não queres morrer, por isso danças.