A conduta (parte II)

OPINIÃO29.04.202206:55

Proíbam todos estes senhores (mas todos) de entrar no relvado no fim dos jogos!

S ÉRGIO CONCEIÇÃO odeia perder, argumenta-se. Tem o sangue quente, justifica-se. Quem não se sente não é filho de boa gente, defende-se ainda. E pronto, está explicado. O treinador do FC Porto pode ter o comportamento que entender que não faltará, nunca, quem o desculpe, seja entre a mesma família clubística, seja entre os que se sentem impelidos a não criticar demasiado para não parecer mal, porque, neste país, criticar os vencedores é, para alguns, coisa de despeito. Mas não é. Nem devia ser.

Sérgio Conceição é um ótimo treinador, claro que é, se não fosse um ótimo treinador não teria sido capaz de fazer o trabalho que tem feito no FC Porto, e ele, Sérgio Conceição, no universo azul e branco, pode, mais do que ninguém, na realidade, puxar, nestes últimos anos, dos galões da competência (independentemente dos momentos menos bons e até de alguns insucessos) e reclamar louros absolutamente justificados pelas equipas de futebol que foi construindo e pelos grandes resultados - vai a caminho do terceiro título de campeão nacional - que tem levado essas diferentes equipas do FC Porto a obter, cá e lá fora.

Não fica mal, aliás, lembrar como Sérgio Conceição (essa personalidade com muito de bipolar) tem conseguido contribuir para extraordinários resultados desportivos e financeiros, num clube que andou numa roda vida de profunda instabilidade desportiva entre 2013 e 2017 (a que se seguiu grave crise financeira), mas que ao longo do tempo, por méritos muitos próprios, mas também por deméritos de um sistema demasiado subversivo, se tornou, na verdade, muito grande e muito maior do que a mentalidade mesquinha, agressiva, obsessiva e sedenta de controlo, domínio e poder de muitos dos seus principais rostos.

Já sabemos como o sucesso desportivo e o poder que ele proporciona podem cegar muitos dos que o atingem; em universos como os do FC Porto, diz-nos a história dos últimos 40 anos, os sucessivos êxitos e as incontáveis glórias desportivas tornaram a coisa bastante pior do que, já de si, poderia esperar-se, porque no FC Porto se instalou uma cultura de impunidade, do contra tudo e contra todos, do quero posso e mando, uma cultura segundo a qual os fins justificam quase todos os meios, e os que se lhes opuserem, por esta ou por aquela razão, terão a resposta adequada, mesmo que se torne necessário, segundo os mandamentos próprios, assumir condutas impróprias, inadequadas, incorretas, ou mesmo, como tem sido infeliz e lamentavelmente frequente, condenavelmente inaceitáveis.

Sérgio Conceição sabe, e já o sabe desde os tempos de jogador do FC Porto, que ou alinha pela atmosfera reinante, ou acontecer-lhe-ia o mesmo que aconteceu a figuras técnicas como Co Adriaanse, Paulo Fonseca, Nuno Espírito Santo ou Julen Lopetegui, para citar exemplos de treinadores (ainda que sem sucesso) facilmente trucidados pela chamada máquina portista, talvez mais pressionante, próxima da realidade do clube e, porventura por isso mesmo, mais eficaz, do que as máquinas de clubes como o Benfica ou o Sporting, que também as têm, mas talvez menos coesas, mais dispersas e, por isso, bem menos eficazes.

Ser um grande treinador, e um treinador vencedor, não pode dar a Sérgio Conceição o direito de se comportar, como agora se comportou em Braga, como um adepto arruaceiro que por acaso entrou no relvado para vociferar contra o árbitro. O lamentável comportamento de Sérgio Conceição (um treinador que me habituei a admirar pelas razões certas, pelo conhecimento do jogo, pela exigência que impõe a si próprio e aos jogadores, pela paixão que transmite, pelas ideias que aplica, pelo compromisso que obtém…) como o que Sérgio Conceição teve, agora, em Braga, porque perdeu e porque considerou injustas algumas decisões da equipa de arbitragem, refletem uma mentalidade, um estilo, seguem um mandamento, alinham com o perfil de comportamento num clube que nos habituou, ao longo de muitos destes últimos 40 anos, a muitos atos de visível violência, agressividade, imposição, ameaça, pressão, arrogância, como eu próprio tive, infelizmente, oportunidade de sentir (e sentir na pele) em muitos tristes momentos da minha carreira como jornalista, um jornalista que sempre se orgulhou de entrar em qualquer estádio deste País de cabeça bem levantada.

É pena que Sérgio Conceição se deixe levar pelo tom de agressividade inaceitável que muitos dos homens mais responsáveis do FC Porto têm, demasiadas vezes, revelado, como tem revelado o principal diretor do futebol portista, que há muito uma disciplina desportiva séria e a sério já teria posto, pelo menos, em grande sentido. É o que temos!

Fez esta semana, aliás, precisamente um ano que o mesmo Sérgio Conceição, então igualmente acompanhado pelo diretor do futebol e pelo diretor de comunicação, perderam também a cabeça junto do mesmo árbitro que dirigiu agora o jogo em Braga. Foi no Moreirense, 1-FC Porto, 1, de 26 de abril de 2021, e tudo, naturalmente, porque os senhores responsáveis do FC Porto consideram que nenhum erro pode ser cometido contra eles. Nenhum.

Nessa mesma noite, recordo, para os que porventura têm mais fraca memória, também um repórter da TVI foi selvaticamente agredido por um senhor identificado como agente/empresário de jogadores e comissionista de transferências evidentemente muito ligado e demasiado próximo, como se viu, ao presidente do FC Porto, que assistiu a tudo sem manifestar (pelo que se viu) qualquer reação condenatória. Se o exemplo vem de cima, se é esse o ADN que dizem (e defendem) ter o universo portista, então um treinador como Sérgio Conceição (com essa tal personalidade hoje sorridente, afetiva e correta, amanhã vulcânica, agressiva, incorreta e impiedosa, até) sente, naturalmente, as costas (muito) quentes para perder a cabeça.

Não é de hoje, porém, que Sérgio revela esse tipo de comportamento, que o leva, mesmo em situações sem qualquer stress, a não conseguir, por exemplo, dar os bons dias ou as boas noites aos jornalistas quando entra nas salas de imprensa, nem a pedir desculpa mesmo quando se atrasa… quase uma hora (como chegou, lamentavelmente, a suceder) relativamente à hora anunciada pela estrutura oficial do clube para o início da conferência e imprensa do treinador. É um pormenor? Talvez seja. Mas diz sempre alguma coisa.

Em Braga, no início do verão de 2015, Sérgio Conceição era o treinador da equipa minhota e, após perder a Taça de Portugal para o Sporting, foi despedido, com processo disciplinar, acusado, por exemplo, de ter «um caráter conflituoso, agressivo e autoritário», o que também não é novidade se pensarmos no que Sérgio Conceição disse, e como disse, quando explodiu contra a própria estrutura do FC Porto na fase final de uma Taça da Liga que perdeu, curiosamente, em Braga, ou contra a própria equipa e contra alguns dos próprios jogadores quando, mais recentemente, voltou a ver a equipa goleada em casa pelo Liverpool.

Ninguém pode, a meu ver, pôr em causa a dignidade, seriedade, honestidade, competência, dedicação, paixão, espírito e determinação de Sérgio Conceição. Sempre gostei de lhe ver a ligação e o compromisso que tem ao futebol e à profissão. Mas não gosto nada, nem poderia gostar, e não sou apenas eu, evidentemente, de o ver no estado de visível má educação, agressividade, descontrolo como se fosse, no campo, o braço armado da claque.

Já o defendi inúmeras vezes e julgo que devemos reconhecer (e compreender) a forma mais dura, sofrida, lutadora com que a vida terá obrigado Sérgio Conceição a esculpir a personalidade e o caráter. Mas creio que chegará o dia em que o próprio Sérgio Conceição reconhecerá que o caminho não é mesmo o que voltou a trilhar no final do jogo de Braga, por muito que lhe custe aceitar os erros de terceiros (sim, o FC Porto foi claramente prejudicado pelo menos ao não ver assinalado o claro penálti de Matheus sobre Evanilson), e por muito que lhe custe aceitar aquela inaceitável atitude do árbitro Hugo Miguel para com Taremi, acusando, com um incompreensível e inaceitável sorriso irónico,  o avançado portista de ter feito teatro quando, na verdade, foi realmente tocado por um adversário. Um árbitro não pode dar a ideia de estar a gozar com um jogador. Era só mesmo o que faltava. Mas Hugo Miguel é um juiz e os juízes têm (ou deviam ter) uma estrutura para os penalizar e penalizar bem. Hugo Miguel está em fim de carreira e talvez por isso mais se predisponha a cometer esse tipo de  abusos. O que é muito triste. No futebol português, há muito que desconfio dessa corporação, mas não nos resta outra coisa senão esperar que o futuro nos traga árbitros mais competentes e organização mais transparente.

A verdade é que com mais ou menos erros dos árbitros (e Hugo Miguel é, na verdade, reincidente em erros graves), ninguém pode ou deve estar (ou achar-se) acima das mais elementares regras, sem as quais é impossível que tudo isto, no futebol, como na vida, tenha uma ordem.

Imponha-se uma disciplina a sério, que defenda o futebol e o espetáculo do futebol. E proíba-se todos estes senhores (todos, de todos os clubes) de entrar no relvado no fim dos jogos. Era remédio santo. Pelo menos para estes males!