A águia e os morcegos

OPINIÃO19.06.201904:00

1. O negócio da venda de João Félix para o Atlético de Madrid por 120 milhões de euros é simplesmente brutal. Nem é preciso saber que é a quinta maior venda de sempre no mundo do futebol para abrirmos a boca de espanto pelos números envolvidos. Para tudo dizer de entrada, foi um fantástico negócio do Benfica (vendendo por este preço irreal um jogador que apenas seis meses antes tinha vindo dos juniores para titular), uma má decisão do jogador, e um negócio que só por sorte não será lamentado pelo Atlético de Madrid. Não que Félix não seja um grande talento em potência, mas por ora é-o apenas em potência. Uma coisa é jogar no colinho da Luz contra Nacional ou Feirense, outra são as altas cavalarias, onde ainda tem tudo por demonstrar e onde tantos jovens promissores como ele soçobraram sem apelo nem agravo. O recente Portugal-Suíça, onde a pedido de várias famílias, se estreou como internacional, foi disso prova eloquente: foi, simplesmente, o pior jogador da equipa, totalmente perdido em campo. Se ele vale 120 milhões, então Cristiano Ronaldo, a avaliar por esse teste da verdade, valerá 1.200, apesar dos seus 34 anos. Se ele entrou em campo a valer 120, saiu de lá a valer não mais de 12 - o que torna absolutamente notável o trabalho de persuasão de Jorge Mendes junto dos responsáveis do Atlético de Madrid. E, obviamente também, o seu trabalho invisível junto daqueles que passam a época a promover os jogadores do Benfica, atribuindo-lhes valores de mercado absurdos mal acontece estrearem-se na equipa principal, e valores loucos mal acontece fazerem nela uma boa exibição. Valores esses que depois Mendes sopra a Luís Filipe Vieira para ele escrever como cláusulas de indemnização, logo propaladas aos quatro ventos pela imprensa afeta ao Benfica. É um trabalho de profissional, que mais uma vez acaba de render frutos. Parabéns a Jorge Mendes, a verdadeira águia do Benfica. Agora, o mais provável é daqui a dois anos estarmos a assistir ao fado habitual de vermos o jogador a pedir ao Atlético de Madrid que o deixe voltar emprestado ao Benfica, pois não se habitua ao futebol da equipa, ao clube ou ao país, ou sente-se muito sozinho na cidade.
Luís Filipe Vieira dirá aos benfiquistas que nunca quis vender João Félix e não o negociou nem vendeu: foi o jogador quem denunciou unilateralmente o contrato, pagando a cláusula de rescisão, e ele nada podia fazer. Permitam-me que duvide desta versão. Muito embora não ponha em causa a afirmação de Vieira de que «gostam todos muito do Benfica, mas também gostam de dinheiro» (uma triste e geral verdade), e também tenha conhecimento da força que o pai do jogador fazia pela sua saída (outra triste e habitual situação), eu não acredito que Jorge Mendes tenha negociado o jogador sem o aval do presidente do Benfica. Vieira e Mendes são hoje uma dupla mutuamente dependente e essencial. Não acredito que Mendes arriscasse quebrar as relações privilegiadas que tem com o Benfica, negociando um seu jogador contra a vontade do presidente. Acredito sim é que Vieira lhe terá dito: «Vê se o vendes, mas só pela cláusula de rescisão porque eu não posso perder a face.» De uma maneira ou de outra, a verdade é que os dois fizeram um fabuloso negócio. O Atlético de Madrid e o jogador (este, abstraindo dos pornográficos 800 euros à hora que vai ganhar), é que precisam de tempo e de sorte para poderem dizer o mesmo.

2. De facto, contrariando o discurso oficial, a ideia é que - com a decisiva ajuda de Jorge Mendes e o empolamento mediático dos valores do seu plantel - todos estão à venda no Benfica. E pelos valores anunciados, má gestão seria se não estivessem. Razão teve o Inimigo Público da semana passada, quando escreveu que os jogadores do Benfica vão passar a ter escrito nas camisolas o valor das cláusulas de rescisão, o valor efectivo de venda e o número de telefone de Jorge Mendes. Mais que uma boa piada, foi uma grande verdade.

3. Já lá por cima, onde mora o meu clube, a época de todos os perigos, aquele em que os morcegos saem à rua de dia, tem sido sobretudo ocupada com os recados transmitidos pelos agentes de jogadores em final de carreira - Buffon, Ricardo Costa, Maxi Pereira - atirando o barro à parede a ver se cola, transformando o FC Porto numa espécie de lar da terceira idade. Depois, há também as habituais notícias do interesse do clube em tudo o que mexe nas Sul Américas - já concretizado num lateral-direito argentino, Saravia, cuja estreia pela selecção deixou os portistas sem água na boca. E, pior do que isso, há também os habituais rumores sobre os negócios complicados ou mesmo abortados pela intromissão em negócios com que não tem nada a ver de um certo empresário que tem a particularidade de, em lugar de ter jogadores em carteira, ter o clube em carteira.

Esse e outros ditos empresários, que apenas o são de vão de escada e do FC Porto, foram quem veio substituir Jorge Mendes, quando ele desempenhava ali o papel que hoje desempenha no Benfica. O afastamento de Mendes do FC Porto, promovido por interesses internos, foi o ponto de viragem decisivo da hegemonia no futebol português. Mais do que o controlo das arbitragens, da disciplina, da Liga, das histórias contadas nos emails, do E-Toupeira ou das manigâncias dos Paulos e Césares, aquilo que fez inverter a relação de forças no futebol português foi a grande transferência de Jorge Mendes do FC Porto para o Benfica. Porque Mendes não compra gato por lebre e, quando vende, vende lebre por leopardo. Pinto da Costa que, ao contrário de Luís Filipe Vieira, percebe do assunto e percebe de futebol, deve torcer-se todo de cada vez que vê Jorge Mendes a marcar golos a favor do seu grande rival. Culpa dele e de ninguém mais.

4. Quando em Dezembro passado assisti em Toronto ao meu primeiro jogo da NBA ao vivo, a primeira coisa que me impressionou foi a fantástica organização e a grandiosidade do espectáculo, absolutamente impossíveis de imaginar através das transmissões televisivas. A seguir, claro, impressionou-me o nível fabuloso do basquetebol ali jogado e, em particular, mesmo a mim, que não percebo nada do assunto, logo me saltou à vista entre todos, uma espécie de deus do basquete chamado Kawhi Leonard. Quando ele pegava na bola e começava a aproximar-se do cesto, era de cortar a respiração, de tal forma a sua elegância letal se destacava acima de todos. Mas estava longe de imaginar que, logo nesse primeiro jogo de NBA, a equipa da casa - cujo nome, os Raptors, eu tomava conhecimento pela primeira vez - iriam, seis meses adiante, tornar-se campeões da NBA, os primeiros campeões não americanos da história da NBA. Mas desde Dezembro para cá, com um acompanhamento mais em Nova Iorque, no Madison Square Garden, é claro que não deixei mais de seguir a par e passo a carreira dos Raptors, desde o fantástico triunfo na Conferência Leste até ao memorável triunfo na final por 4-2, que levou Toronto inteiro para as ruas e consagrou Kawhi Leonard, a anti-vedeta que não frequenta redes sociais, como o MVP da final. Aqui entre nós, acho que para sempre me vou considerar a mascote dos Raptors. Afinal, sempre me senti campeão de alguma coisa de grande, este ano.

5. Inversamente, o futsal (que, na minha juventude se chamava depreciativamente futebol de salão) só há uns anos ganhou estatuto de modalidade de referência entre nós porque, incapazes de disputarem a hegemonia do FC Porto no futebol a sério, Benfica e Sporting apostaram no salão como forma de se compensarem. Mas a prova de que nunca foi uma modalidade de referência é que o FC Porto não a pratica. Agora, que o Benfica pôs fim a três anos seguidos de compensação do Sporting, quiseram-nos convencer que o futsal é uma extensão do futebol a sério. Aqui, neste jornal, proclamou-se, garrafalmente, que a «reconquista» continuava, e até o estimável Público trazia a notícia em primeira página. Ah, se o ridículo matasse!