Ainda sobre a competência de opinar (artigo de Armando Neves dos Inocentes, 53)

Espaço Universidade Ainda sobre a competência de opinar (artigo de Armando Neves dos Inocentes, 53)

ESPAÇO UNIVERSIDADE03.01.202220:01

Ninguém se lembraria de colocar um alcoólico a apresentar um programa de vinhos ou a comentar as suas características e/ou propriedades. Para isso escolheria provavelmente um enólogo ou um escanção. “Tinto ou branco? Cheio!” seria o comentário mais badalado por um comentador cujo estado permanente fosse o de etilizado. E por que motivo? Porque para o alcoólico qualquer vinho é bom: tanto faz tinto como branco, o importante é que lhe tolde os sentidos e que viva uma outra realidade.

Mas lembram-se de colocar “comentaristas” (sim, nem sequer são comentadores) a debitarem as suas opiniões em programas que possuem público. E o mais curioso é isso mesmo: eles têm quem os ouça! E quem lhes dê crédito! Porque, como firma Alain de Botton (1), a máquina da comunicação social contemporânea tem o poder de esmagar a nossa capacidade para pensar com independência.

A responsabilidade de quem os coloca a debitar opiniões superficiais sobre assuntos mais profundos do que eles próprios imaginam deveria ser auditada. Pior ainda quando acicatam uns contra outros… Mas o problema não reside na existência destes “comentaristas”. O problema reside no facto de terem público, de criarem a sua própria imagem, de serem viciados no poder da comunicação. E, segundo o mesmo Alain de Botton, eles possuem “o poder de montar a imagem que os cidadãos acabam por ter uns dos outros; o poder de ditar como será a nossa ideia das «outras pessoas»; o poder de inventar um país nas nossas imaginações." Os formatadores só existem porque há os que querem ser formatados. O problema reside no facto de os receptores destas mensagens se terem habituado a isto e a ir absorvendo – nem sequer assimilam, dado a sua ausência de espírito selectivo ou crítico – aquilo que lhes é impingido. A grande maioria habituou-se, acomodou-se, torna-se moldável, submissa, amorfa, e, como nos disse Friedrich Nietzsche (2), “os povos só são tão enganados porque procuram sempre um enganador, isto é, um vinho excitante para seus sentidos. Contanto que possam obter esse vinho, contentam-se com pão de má qualidade. A embriaguez interessa-lhes mais que a alimentação – esta é a isca com que sempre se deixam pescar! (...) Os povos obedecem sempre e vão mais longe ainda com a condição de poderem-se embriagar!”

Mas o contrário, que é de louvar, também existe. Quando um dos “comentaristas” com maior projecção na televisão dizia “esta vinda dos dirigentes do Flamengo a Portugal para tentar contratar Jesus é um disparate… uma falta de respeito… não faz sentido… é uma coisa de terceiro mundo… isto não é futebol profissional nem gente decente…” um jornalista soube, e muito bem, contrapor: “mas o Benfica fez o mesmo para ir buscar JJ!” Resposta comprometida a do “comentarista”: “mas vamos ver… quer dizer… vamos lá ver.” No entanto o “comentarista” tem audiência, tem quem o siga nas suas opiniões – é a reprodução a funcionar…

Mas não é só na TV que isto acontece! Temos comentadores que se batem sistematicamente por apresentar o futebol como sendo uma indústria. Um deles, numa coluna de opinião semanal que ocupa cerca de um terço de página de um diário desportivo, chega a utilizar por três vezes o termo “indústria” para classificar o futebol, tudo na mesma crónica. Não admira pois que os ingénuos vão falando no futebol como uma indústria quando tudo se trata de negócio – e este enquadra-se no comércio, não na transformação de matéria-prima e na elaboração de um produto.

E torna-se excruciante vê-los confundir futebol com desporto, táctica com estratégia e atitude com comportamento…

No entanto há comentadores desassombrados. Felizmente ainda temos um comentador a dizer-nos que “a boa notícia é que, afinal, o futebol é bom negócio. A má também.” Ou um outro a dizer-nos que “o futebol é uma actividade (chamar indústria pouco sentido faz) com regras de monopólio (ou duopólio) básicas”. Ou ainda aquele que declara que se queremos perceber o futebol que estudemos economia… ou que “o jogo da moda não se chama futebol, antes populismo – até os futebolistas já sabem jogá-lo.” E também mais um outro que nos diz que os muitos comentadores que se debruçam, a toda a hora, nos nossos televisores, “não se cansam de dizer que é preciso defender essa indústria, desenvolver o produto (eu sei, parecem estagiários do Jornal de Negócios, não comentadores de futebol) ”. E também aquele que afirma que “ainda não foi escrito o livro negro do desporto”… Espíritos lúcidos que não se deixam toldar… seja tinto ou seja branco!

Sobre o ocorrido no Jamor entre o Benfica e o Belenenses SAD muito foi opinado, muito foi adjectivado. Expressões como “vergonhoso quanto indecoroso ataque à dignidade da competição e verdade desportiva”, “atentado ao pudor”, “farsa que envergonha o futebol português”, “vergonha como não há memória”, “desvirtuar a verdade desportiva” foram amplamente utilizadas sem serem fundamentadas e sem se tentar alcançar o âmago da questão ou sugerir soluções (realcemos que temos de distinguir três aspectos: o comentário, a análise e a crítica). E eles fazem a opinião! Uma opinião tóxica e poluente. Todavia eles nunca assumem a posição de não (querer) perceber que eles próprios e muitos dos seus colegas “comentaristas”, talvez a maior parte, só debitam comentários para encher chouriços. E o chouriço, acompanhado de um copo vai sempre bem!

Para os comentadores “especialistas em desporto” aqui ficam onze questões para responderem. E bastará acertarem apenas em cinco. Ou então que reconheçam que apenas são (quase) comentadores só de futebol. Ou “comentaristas”! Porque, parafraseando Abel Salazar, quem só percebe de futebol nem de futebol percebe.

1 – Quantas e quais as armas da esgrima?

2 – Que relação há entre os números 732 e 244?

3 – Quem foi a árbitra portuguesa que dirigiu uma final da Taça de Portugal?

4 – Quantos buracos tem um campo de golfe?

5 – Um futebolista, bom futebolista, foi indisciplinado num treino, nas vésperas de uma prova, tendo-se mesmo dirigido ao treinador de forma insultuosa perante os outros colegas. Deverá o treinador colocá-lo a jogar para ter uma equipa mais forte?

6 – No ténis, em que condições o jogador que ganha o maior número de jogos pode ser o derrotado?

7 – A que altura se encontra o aro de um cesto de basquetebol? E quem a determinou?

8 – Na natação, nos J. O., quantas piscinas faz um nadador na prova de 150 metros livres?

9 – No futebol, a marca de grande penalidade situa-se a 11 ou a 11,5 metros da linha de golo?

10 – Qual o diâmetro da trave e dos postes de uma baliza de futebol?

11 – Qual o clube de futebol que possui no seu emblema uma raquete de ténis?

Sim, o leitor também poderá tentar… Tem aqui em baixo a caixa de comentários… atreva-se!

(1) Botton, A., 2014. “As Notícias: um manual de utilização”. Alfragide: Dom Quixote.

(2) Nietzsche, F., 2004. “Aurora: Reflexões sobre os preconceitos morais”. São Paulo: Companhia das Letras.

Armando Neves dos Inocentes é Mestre em Gestão da Formação Desportiva, licenciado em Ensino de Educação Física, cinto negro 6º dan de Karate-do e treinador de Grau IV.