Desporto e imaginação sociológica (artigo de Vítor Rosa, 158)

Espaço Universidade Desporto e imaginação sociológica (artigo de Vítor Rosa, 158)

ESPAÇO UNIVERSIDADE17.07.202117:47

De pleno direito, as “questões desportivas” integraram-se nas “questões da sociedade”, com a irrupção da dopagem, da violência, da corrupção, etc.; fenómenos negativos, mas que, na verdade, não têm nada de específico. São provas da “secularização” do campo desportivo. São sinais de uma sociedade em crise (sempre em crise!) e de um ambiente agitado. Ou, se quisermos, são formas primitivas das mentalidades nas sociedades modernas. O desporto exprime uma esperança positiva de integração social, de unidade, de ligação comunitária entre as pessoas. Mas também coloca em evidência os fantasmas, os medos, as angústias, os ódios, os conflitos, as repulsas. O desporto é uma forma de representação da sociedade, que não deixa de estar em processo de “estruturação” (o conceito de estrutura social é importante para a Sociologia. Os contextos sociais das nossas vidas estão estruturados ou, se quisermos, padronizados, de diferentes formas).
 

O investimento físico e o deslumbramento perante as proezas desportivas são objeto de inúmeros comentários. Mas o sentido da prática desportiva raramente é objeto de uma atenção aprofundada. O sucesso de desporto parece natural e nada parece incomodar as consciências. As observações atestam, no entanto, que o desporto continua a ocupar, em Portugal, um baixo nível na hierarquia dos objetos (temas) consagrados na pesquisa universitária. Se os padres não são os mais bem colocados para fazer a sociologia da religião, cremos que os professores de educação física, não são os profissionais mais adaptados para fazer a sociologia do desporto. A sociologia*, ou melhor a “física social”, tal como sublinhava o autor francês Auguste Comte (1798-1857), é a mais complexa das ciências. Na análise do desporto, reclama-se, muitas vezes, a necessidade de se empreender uma interdisciplinaridade, mas isso é um índice da constituição de um campo de concorrência científica. Cada um vê o fenómeno desportivo a partir de quadros teóricos e de paradigmas caldeados na sua própria disciplina. Nesta guerra de conquista de territórios, os melhores armados são os mais legítimos e os mais poderosos. O saber, estreitamente submetido às leis da difusão cultural, tende a ser gerado por aqueles que controlam os suportes e os canais.
 

Uma das primeiras caraterísticas do desporto é que o podemos ver, tal como Janus, sob duas faces: arcaísmo e modernismo. E numa dialética permanente: oferta e procura. As práticas desportivas, ajustam-se entre três tipos de lógicas: uma lógica sociocultural (idade, sexo, habilitações literárias, rendimentos…), uma lógica técnica (modalidades, variantes da prática), que se associa aos “usos sociais” de uma atividade (locais de prática, modos de organização, tipos de preparação, drogas ou estimulantes, dietética…) e uma lógica simbólica (imagens, representações, valores, modelos, símbolos…). Se um campo desportivo agrupa múltiplos produtores (públicos e privados), assegurando funções sociais ou económicas diferentes: educação, saúde, lazer, espetáculo, medias, produção industrial, distribuição comercial, etc., também manifesta uma dinâmica concorrencial. Os mitos unificadores do desporto podem servir uma sociedade, na procura de unidade e de identidade. Numa sociedade onde todas as outras formas de integração entram em crise (lutas sociais, trabalho, cultura) e onde as funções de integração escolar sucumbem sob a evidência da exclusão (ou de grandes desigualdades sociais), cremos que o poder público (local e nacional) deveria apoiar mais o desporto. Isto porque num mundo onde os pontos de referência parecem difíceis de encontrar, e numa racionalidade que não produz a “libertação do ser humano”, o desporto pode ser uma porta de entrada.

Nota:

*A Sociologia não é, como muitos julgam, apenas um campo intelectual abstrato. Ela pode ter implicações práticas importantes na vida dos indivíduos. Só temos de ter imaginação – Charles Wright Mills, autor americano, denominou “imaginação sociológica” – e relacionar ideias (e conclusões) com situações da vida. Basta estarmos conscientes da existência de contextos culturais diferentes dos nossos.

Vítor Rosa

Sociólogo, Doutor em Educação Física e Desporto, Ramo Didática. Investigador Integrado do Centro de Estudos Interdisciplinares em Educação e Desenvolvimento (CeiED), da Universidade Lusófona de Lisboa