O Karate falará português nos J. O. de Tóquio? (artigo de Armando Neves dos Inocentes, 44)

Espaço Universidade O Karate falará português nos J. O. de Tóquio? (artigo de Armando Neves dos Inocentes, 44)

ESPAÇO UNIVERSIDADE06.07.202109:17

Tóquio 2020 aproxima-se! A estreia do Karate nos Jogos Olímpicos também se aproxima. Uma estreia com uma presença efémera dado que o mesmo já não estará presente nos J. O. de Paris 2024.

Antes de respondermos à questão que encima este artigo, teremos de fazer um enquadramento histórico a fim de se compreender toda a complexidade da mesma, dado que a passagem do Karate de arte marcial a desporto de combate não foi uma mutação repentina, mas um processo gradual (com diversas fases em diferentes contextos históricos e culturais) inserido em modificações sócio-culturais – há uma progressão temporal que determina uma evolução – e pela aculturação de uma realidade oriental na cultura ocidental – há uma difusão geográfica, espacial, que implica um alastramento por todo o mundo. Todo este processo, um lento passo-a-passo, originou aquisições e reinterpretações mas também degenerações, até porque as diferentes condições históricas e a disparidade das diversas culturas criaram situações objectivas de desigualdade. (1)

1º parêntesis: a terminologia correcta é “Karate-do” ou “Karatedo”. A lei do menor esforço ou outros interesses levam-nos a falar em “Karate” (e quão importantes são esses “interesses”…).

 2º parêntesis: apesar de associarmos o conceito de “arte marcial” a técnicas de lutas orientais, este termo provém do nome do deus romano da guerra, Marte, e a notação escrita mais antiga que conhecemos remonta a 1639 no livro “Pallas Armata, The Gentlemans Armorie”, escrito por Sir James Turner, referindo-se à “arte marcial da esgrima”. Logo, é um constructo de origem ocidental.

3º parêntesis: “O Karate não é considerado uma das artes marciais tradicionais japonesas, apesar de algumas vezes ser referido como tal fora do Japão. Após a Restauração Meiji (1868) o conteúdo das artes marciais mudou enormemente, refletindo o fato de que elas não mais deveriam ser utilizadas em combate e que já não eram de treino exclusivo da classe guerreira. Refletindo esta nova circunstância, o termo Bujutsu foi substituído pelo termo Budo, implicando que deveria ser treinado mais sob princípios espirituais do que para o combate.” (2) Apontava-se assim mais para uma codificação de técnicas e para uma forma de realização pessoal através da acção motrícia de combate ritualizado e simbólico, sendo o corpo do outro o objecto e objectivo da acção, e o contacto corporal intencional, directo e um fim em si. “Depois da Segunda Guerra Mundial, houve a necessidade de modificar certas visões das artes marciais e (mudar) a ênfase de artes práticas com objetivo de defesa nacional para desportos que conferem maior harmonia e universalidade.” (2)

4º parêntesis: segundo Patrick McCarthy (3), em 1933 o Dai Nippon Butokukai – organismo do governo nacional do Japão para as artes marciais – lançou um repto aos mestres de Karate da altura em Okinawa a fim de que o então denominado Tode ou Karate-jutsu fosse reconhecido oficialmente no Japão… Pretendia-se assim não só organizar o ensino desta arte, mas também tornar a mesma pertença original do Japão, por força de um poder nacionalista combinado com um sentimento anti-chinês.  Foram quatro as imposições do Butokukai: desenvolver um uniforme/equipamento ‘standard’; adoptar um sistema de graduações “dan/kyu” semelhante ao de Jigoro Kano no Judo; estabelecer um programa/sistema de ensino/avaliação; e mudar o primeiro ideograma de “Tode” e adicionar o sufixo “do”, resultando a palavra japonesa “Karatedo”. Como se verifica, estas foram imposições políticas. Em 1936, os mestres mais representativos de Okinawa acordaram aceitar estas condições e assim se deu início à institucionalização do Karate. O acto de constituição do Karate foi pois um acto político e podemos dizer que o Karate existe só desde 1936.

A apresentação do Karate como um desporto (a primeira competição formal aconteceu no Japão no já distante ano de 1957 sob a égide da Japan Karate Association) levou a que se formasse uma Federação Europeia em 1963, tendo-se realizado três anos depois o 1º Campeonato Europeu de Karate, e uma Federação Mundial em 1970 (a WUKO, actualmente WKF), a qual realizou o 1º Campeonato Mundial de Karate em Tóquio nesse mesmo ano.

 A World Karate Federation (WKF), a federação internacional mais representativa da comunidade karateka – sim, porque há outras 5 ou 6 federações internacionais – lançou uma enorme campanha (‘The K is on the Way’ era o mote) tendente a que o Karate estivesse presente no programa dos J. O., não conseguindo ter sucesso em relação a 2012 nem a 2016. A hora chegou apenas para os J. O. de 2020.

Exultou-se, dando loas, quando o Karate foi contemplado no programa dos J. O. de 2020, atirando-se foguetes e recolhendo-se as canas. Propalaram-se virtudes e potencialidades, glorificaram-se valores e benefícios, celebrou-se a festa e deram-se hossanas. Realçou-se uma futura via melhor, mais atractiva, mais dinâmica e com maiores virtualidades. Treinadores, competidores e praticantes glorificaram a modalidade… Adeptos do Karate “puro e duro”, ou em linguagem corrente, do tradicional, descobriram a fórmula de se projectarem e adquirirem ‘status’ dedicando-se à competição arrastando para ela aqueles sobre quem tinham responsabilidades. Passaram a ser mais relevantes os lugares no pódio e as medalhas em detrimento de uma formação harmoniosa do indivíduo ou de uma construção do seu carácter.

Apareceram discursos afirmando que finalmente o Karate era um desporto olímpico – quando já o era desde 18 de Março de 1999, desconhecendo-se esse facto ou confundindo-se «desporto olímpico» com «modalidade constante do programa dos J. O.» – surgiram campanhas prometendo uma maior visibilidade da modalidade, um aumento do número de praticantes nos ‘dojo’ (vulgo ginásio ou academia, o lugar onde se pratica a via) – esquecendo o “do”, a via, o caminho, (o tal “do” que existe no Kendo, no Judo, no Iaido, no Aikido) a ponto de se retirar este sufixo do termo Karatedo (ou Karate-do) mas continuando a manter o mesmo no início do termo ‘dojo’ (o que seria do local de treino sem um conteúdo para treinar e ser treinado???).

Não podem estes arautos dizer que não foram alertados para o modo de seleccionação dos competidores: só haveria 80 vagas para os karateka participantes nos J. O. – 40 vagas femininas e 40 vagas masculinas, sendo que 60 seriam na prova de kumite (combate) e 40 na prova de kata (formas técnicas) – e a selecção dependeria da contabilização de pontos conquistados num circuito mundial, o qual estabeleceria um ‘ranking’. Não seria uma escolha equitativa por países… como julgaram muitos dos que, indocumentadamente, foram induzidos em erro.

E, exactamente para puderem participar nesse circuito, um planeamento bem efectuado alicerçado num bom orçamento teriam de ser bem articulados. O que se verificou? Uns competidores a movimentarem-se por um lado, outros por outro, deixando entregue uma qualificação à última da hora em três eventos: o Karate Premier League em Lisboa, o Campeonato Europeu em Porec, na Croácia, e o Torneio de Qualificação Olímpica em Paris. E se alguns bons resultados faziam alimentar alguma esperança, parece-nos que uma má gestão de recursos fizeram ruir essa esperança. A estratégia da crença e do milagre ‘in extremis’ resultaram num fracasso. Se um 7º lugar num Campeonato Europeu entre 30 competidoras se pode classificar de bom resultado, dado se encontrar no primeiro quarto da classificação (embora não desse apuramento para os J. O.), o que dizer de um afastamento logo na primeira ronda numa prova de kumite, ou de um 9° lugar em 34 ou de um outro 21° em 35? Quanto a Paris, oito competidores deslocaram-se ao Torneio de Qualificação Olímpica – derradeira hipótese – mas nada conseguiram… Parece-nos que os competidores se aplicaram, se esforçaram, se comprometeram, mas algo falhou. Será objecto de análise pelas entidades responsáveis?

E se a equipa feminina de kata de Portugal conquistou a medalha de bronze no Campeonato Europeu, há que ter a noção de que o fez entre 12 equipas...

Há anos que constatámos que a alta competição não se compadece com amadorismos. Continuamos a constatar…

Regressando à pergunta inicial, não, não teremos Karate a falar português nos J. O. de Tóquio. Provavelmente a modalidade continuará com a mesma visibilidade ou sem ela, os ‘dojo’ com os mesmos praticantes e os competidores com os mesmos resultados… os selecionadores, os árbitros e os dirigentes com as mesmas saídas lá fora! E os treinadores cá por casa? Deitaram os foguetes e recolheram as canas, agora calados como nunca, não se manifestam. Ahhhh, e como nos dizia Jorge Valdano em «A Bola» (03.07.2021, p. 31), embora em relação ao futebol, “antes de modificar campeonatos, há que fortalecer o produto com treinadores corajosos. Só assim se aguentará este negócio.” Faça-se o necessário ‘transfer’.

Mas alegremo-nos! Valéria Kumizaki e Douglas Brose também não estarão em Tóquio. Aliás, o país irmão também não terá lá ninguém, nem para falar português do Brasil. Vão estar 34 países nos próximos J. O. e nenhum deles falará a nossa língua. Victor Hugo disse algo parecido com isto (e citamos de memória): “a consolação dos infelizes é não estarem sozinhos na sua miséria”.

(1) Inocentes, A., 2009. “Ritos, reproduções e crenças: uma análise socio-pedagógica”, in Salgado, J. & Pereira, L., “Karaté: entre a tradição e a modernidade”, pp. 117-158. Lisboa: Ed. FNK-P.

 (2) Kodansha Intanashonaru Kabushiki Kaisha, 1995. “Japan: Profile of a Nation”. Tokyo: Kodansha International.

(3) McCarthy, P., 1996. “The Bible of Karate – Bubushi”. Vermont & Tokyo: Tuttle Company.

Armando Neves dos Inocentes é Mestre em Gestão da Formação Desportiva, licenciado em Ensino de Educação Física, cinto negro 6º dan de Karate-do e treinador de Grau IV.