Corpo e alma: a socialização do pugilista (artigo de Vítor Rosa, 145)

Espaço Universidade Corpo e alma: a socialização do pugilista (artigo de Vítor Rosa, 145)

ESPAÇO UNIVERSIDADE13.04.202117:29

Para a preparação de uma conferência, reli um artigo de Loïc Wacquant sobre o boxe. O artigo em causa é o seguinte: “Corps et âme. Notes ethnographiques d’un apprenti-boxeur”, Actes de la recherche en sciences sociales, vol. 80, 1989, pp. 33-67. Wacquant, nascido em 1960, ensina na Universidade de Berkeley. Depois do seu encontro com Pierre Bourdieu (1930-2002), ele orienta-se para a investigação sociológica no início dos anos 1980. De 1985 a 1994, foi estudante no departamento de sociologia da Universidade de Chicago, próximo da “South Side”, ou seja, na época um dos maiores guetos negros dos EUA.

Nos seus trabalhos académicos, queria estudar o gueto, a divisão racial e as transformações sociais dos bairros. Retomará esses temas nos anos 1990, sobretudo quando reflete sobre os processos de criminalização da miséria dos EUA, em ligação com a questão racial (Les prisons de la misère, 1999; Parias urbains. Ghettos, banlieues, Etat, 2008). Para encontrar um lugar de observação desse bairro, ele encontra-se a treinar num ginásio de boxe. Aproveitando, reflete sobre os aspetos metodológicos: o interesse e as dificuldades da observação-participante para estudar um mundo social fechado, estigmatizado (gueto) ou mistificado (boxe). Essa observação-participante permite-lhe ultrapassar a distância social, cultural e “racial”: ele é um “branco” (americano) que, como “ousider” (francês), tece laços de sociabilidade e de cumplicidade com Didi (treinador de boxe) e os pugilistas. Vai obter um material etnográfico muito rico e compreender o quotidiano de uma sala de boxe.

Através da sua experiência, tornar-se-á pugilista amador, levando-o até a questionar-se sobre a sua continuidade no mundo académico. Wacquant interroga-se sobre o “processo de inculcação do habitus pugilístico” e a socialização específica de um indivíduo normal, que se torna um pugilista aguerrido. Neste artigo, ele mostra que existe uma dupla antinomia: 1) o boxe situa-se entre a natureza e a cultura: prática “selvagem”, mas que exige uma gestão racional do corpo e do treino; 2) prática desportiva individual, cuja aprendizagem se faz de forma coletiva. De facto, o boxe é um desporto individual, talvez um dos mais individuais, dado que se coloca fisicamente em jogo - e em perigo - o corpo do combatente. Tornar-se pugilista é apropriar-se de uma impregnação progressiva de um conjunto de mecanismos corporais e de disposições mentais, estreitamente imbrincados(as), que atenuam a distinção entre o físico e o espiritual, o que diz respeito às capacidades atléticas e o que são as faculdades morais e da vontade.

Apesar de mediatizado, conhece-se mal o universo pugilístico. As representações comuns e mediáticas formam uma espécie de “mitologia coletiva”, que é preciso afastar, dado que deforma a realidade desta prática desportiva. A tendência de “exotismo pré-fabricado” ou a heroicidade dos campeões não permite compreender a rotina dos treinos dos pugilistas. O clube de boxe incarna, na perspetiva de Wacquant, o “verdadeiro boxe”, situado numa posição intermédia: a) o boxe “selvagem” das altercações de rua, em posição dominada; e b) o boxe mediático, que diz respeito a uma lógica comercial, em posição dominante. O seu estudo coloca em perspetiva o clube no espaço social do bairro (Woodlawn, gueto negro do norte de Chicago, marcado pela pobreza e pela violência). Naquele contexto, de miséria, de desemprego, etc., o clube de boxe é uma “ilha de estabilidade”, que dá um sentido de vida aos pugilistas. É uma escola de moralidade, onde se transmitem certos valores, se adquire um espírito de disciplina, de respeito pelo próprio e pelo grupo, pela autonomia e pela vontade de se vencer na vida. No fundo, é uma imagem de santuário, espaço sagrado, separado do mundo profano, “templo” do culto pugilístico. Isso liga os homens em torno de uma mesma crença coletiva, de regras de vida e de práticas rituais. O boxe profissional é um universo muito seletivo. As técnicas do corpo necessitam de um longo processo de aprendizagem, da constituição progressiva de um habitus específico. Desenvolve-se um capital corporal… e de alma.

Vítor Rosa

Sociólogo, Doutor em Educação Física e Desporto, Ramo Didática. Investigador Integrado do Centro de Estudos Interdisciplinares em Educação e Desenvolvimento (CeiED), da Universidade Lusófona de Lisboa