O desporto: um mundo fantasiado face às realidades (artigo de Vítor Rosa, 131)

Espaço Universidade O desporto: um mundo fantasiado face às realidades (artigo de Vítor Rosa, 131)

ESPAÇO UNIVERSIDADE30.10.202022:30

A história do desporto está marcada por uma sucessão de eventos, de recordes e de performances que impregnam as sociedades modernas. As evoluções técnicas, tecnológicas, regulamentares, mediáticas ou económicas atestam a permeabilidade do universo desportivo face a um mundo que não pára de o moldar.

O caminho socio-técnico-político está embebido por uma conceção secular e imutável de valores próprios ao desporto. Enquanto modelo social, a legitimidade do desporto assenta, essencialmente, na aceitação, sem reservas, de um certo número de princípios, nomeadamente o da justiça. Aos olhos de grande número de cidadãos, o desporto constitui o último reduto de uma forma de justiça que dá sentido à meritocracia, amplificando a função agonística. Por que ele se insere na continuidade política e económica das sociedades industrializadas e capitalistas, o desporto funda-se sobre o reconhecimento dos méritos individuais para explicar as diferenças sociais entre os indivíduos. O modelo desportivo repousa, por isso, como o capitalismo, sobre a noção de igualdade e sobre uma justiça socialmente contruída pelos atores sociais. Mas, vários estudos sociológicos, nomeadamente os de Pierre Bourdieu, mostram que o sistema capitalista se alicerça justamente sobre as desigualdades sociais.

Nestas condições, a experiência quotidiana que fazemos da sociedade na qual vivemos ilustra em permanência a irrealidade da justiça social como pressuposto do funcionamento do capitalismo. Ao mesmo tempo, o sistema judiciário, o garante do ideal democrático, é constantemente colocado em causa. Há várias anos que o funcionamento da justiça testemunha a sua ineficácia, nomeadamente face ao poder político. O princípio da separação dos poderes apresenta algumas entorses, ao qual o público assiste sem reação.

O modelo desportivo continua a conservar uma inteligibilidade comum e tangível, preservando o equilíbrio do jogo. É, por isso, que os presidentes das federações desportivas (internacionais e nacionais), os responsáveis políticos e os atletas lembram-nos dos valores ancestrais do desporto: igualdade, justiça, fair-play, respeito, entre outros. Estas conceções são erigidas como princípios absolutos, contribuindo até para ocultar muitas das reais condições da prática desportiva competitiva. Uma observação atenta da atualidade desportiva ensina-nos sobre o estado do desporto e sobre a sua evolução.

Vítor Rosa

Sociólogo, Doutor em Educação Física e Desporto, Ramo Didática. Investigador Integrado do Centro de Estudos Interdisciplinares em Educação e Desenvolvimento (CeiED), da Universidade Lusófona de Lisboa