O Martelo de Nietzsche VIII  (artigo de Gustavo Pires, 120)

Espaço Universidade O Martelo de Nietzsche VIII (artigo de Gustavo Pires, 120)

ESPAÇO UNIVERSIDADE26.06.202014:18

1- Neste tempo em que os dirigentes das diversas instituições políticas e desportivas, tudo indica, já não acreditam nos princípios e valores do desporto servindo-se dele como qualquer ditador da américa latina, recomendo a leitura do livro de Bernard Yanez intitulado “Deux visages du fascisme: Coubertin et Hitler”. E porquê? Porque a emoção da estética dos grandes eventos desportivos, desde o seu anúncio até à condenação dos heróis vencidos, embebeda os políticos populistas e ilude os cidadãos incautos. Até Pierre de Coubertin, já no final da sua vida, falido, doente e desconsiderado pelos franceses, deixou-se ir na cantilena  da neutralidade política do desporto e acabou por fazer um frete aos nazis. E logo ele que, muito para além da pedagogia, foi o primeiro homem a ter uma visão política do desporto. Ele foi o primeiro político do mundo moderno a descobrir e a utilizar o poder do “soft power”. A sua posição relativamente aos Jogos Olímpicos de 1936 custou-lhe o Nobel da Paz. Coubertin viria a falecer no ano seguinte sem assistir ao desencadear da guerra pela besta Nazi que viria a acontecer em 1939.

2- Grande entrevista a de Manuel Brito o presidente da Autoridade Antidopagem de Portugal (ADoP). Duas páginas do desportivo A Bola (2020-06-16) com cinco extraordinárias fotografias uma delas 20x21 cm o que em quaisquer circunstâncias impõe respeito. Eu que por interesse profissional comecei a organizar um dossier sobre doping precisamente em 1969 ano em que Joaquim Agostinho foi desclassificado da volta a Portugal (ainda hoje não compreendo como é que os marretas do apoio médico não foram responsabilizados) ao ler a vasta entrevista acabei por ficar a perceber ainda menos porque é que o Governo trocou Rogério Jóia que vinha a fazer um trabalho excelente por Manuel Brito.

3- Da entrevista do presidente da ADoP ficou-me o sentimento da sua mais completa inutilidade na medida em que se umas das medidas pomposamente anunciadas por Manuel Brito já vinham do tempo de Rogério Jóia as outras, não tinham qualquer interesse. E, por isso, a dita entrevista, para além da excelente estética das fotografias com expressões faciais de grande autoridade, fez-me recordar o ensaio intitulado “Shooting an Elephant” de George Orwell.

4- Relativamente ao ensaio “Shooting an Elephant”, George Orweell, enquanto funcionário administrativo na Índia colonial britânica, foi colocado perante a situação de ter de abater um elefante sem nenhuma necessidade de o fazer. O problema, explicava ele, era que toda a gente estava à espera que ele abatesse o elefante. E concluiu o relato do acontecimento confessando que só matara o elefante para não fazer figura de tolo. 

5- A metáfora do “Shooting an Elephant” de George Orwell levanta uma das questões mais interessantes para a teoria da gestão na era da comunicação de massas em que vivemos. Um burocrata administrativo sente-se na obrigatoriedade de mostrar serviço só porque toda a gente espera que ele o faça mesmo que não tenha nenhum serviço especial a mostrar. Manuel Brito não matou um elefante, mas matou uma entrevista. Porque, ninguém percebe minimamente qual foi o objectivo da mesma. O que se esperava era um esclarecimento cabal acerca da ADoP, quer dizer, o que é que anda a fazer, com que resultados e a que relação custo / benefício. Pelo contrário, a entrevista circunscreveu-se ao ciclismo (com uma breve passagem pelo futebol) e, bem vistas as coisas, não serve para nada a não ser para, em grande medida, relatar aquilo que já vinha do tempo de Rogério Jóia e isso já nós sabíamos: (1º) Os processos dos ciclistas já vinham do tempo de Rogério Jóia; (2º) Os contactos internacionais relativos ao passaporte biológico já vinham do tempo de Rogério Jóia; (3º) A lei  nº111/119 que regulamenta a ação da  ADoP já vinha do tempo de Rogério Jóia; (4º) Os casos do futebol também já vinham do tempo de Rogério Jóia; (5ª) A intervenção da ADoP na Volta a Portugal já vinha do tempo de Rogério Jóia; (6º) Os controlos fora das competições já vinham do tempo de Rogério Jóia, só que, agora, e esta é a única novidade, em tempo de Covid-19, estão suspensos. Por mim, concluo que tal como George Orwell foi obrigado a matar o elefante porque toda a gente estava à espera que ele o fizesse, assim também Manuel Brito foi obrigado a “matar a entrevista” porque toda a entourage política estava à espera daquela morte anunciada. Entretanto: (1º) Perdeu a oportunidade de demonstrar a bondade da decisão política do Governo de o nomear em substituição de Rogério Jóia; (2º) Não foi capaz de provar a sua superior competência relativamente à de Rogério Jóia, antes pelo contrário e; (3º)  Não vale a pena tentar uma segunda oportunidade a fim de criar uma primeira boa impressão até porque ela não existe.

6- O Regime Jurídico das Federações Desportivas (Decreto-Lei n.º 248-B/2008 de 31 de Dezembro), a fim de acabar com os abusos dos excelentíssimas líderes dinossaúricos que se apropriaram do desporto nacional, determinou a limitação de mandatos num mesmo órgão de uma federação desportiva. O problema é que em Portugal existe a “figura jurídica do esquema” que pode ser definida como o processo expedito para, de uma forma perfeitamente legal, ultrapassar os constrangimentos da lei fazendo com que, em termos práticos, ela deixe de existir. Em conformidade, no mundo do desporto, para além de qualquer réstia de vergonha, está instituída  a figura do Testa de Ferro que, do ponto de vista formal, dá a cara para que alguém, mais ou menos na sombra, exerça realmente o poder. Mas o que mais entristece em tudo isto é haver uma sociedade que, do ponto de vista ético-moral, aceita viver com tal estado de coisas sabendo que tudo isto acontece à custa do dinheiro dos contribuintes.

7- Da educação física aos jornais ninguém pode agora vir armar-se numa donzela virgem liberta de quaisquer  responsabilidades pelo estado caótico em que o desporto nacional se encontra. A educação física, desde princípio dos anos noventa, funciona de acordo com uns programas escolares que, na concepção da sua superestrutura, são completamente anacrónicos. Os resultados estão à vista:  os cidadãos, do ponto de vista desportivo, de uma maneira geral, são incultos quando não incultos e boçais. Pelo seu lado, a jusante, os jornais, porque perderam a paixão e o encanto do passado, procuram satisfazer mais os instintos primários do que a inteligência emocional dos seus leitores. Ora, se o que se passa na educação física e nos jornais, a curto prazo, pode garantir alguma sobrevivência, a médio e longo prazos só pode garantir o colapso. Vive-se num círculo vicioso: Os jornais não alimentam a educação e a cultura desportivas dos leitores porque os programas de educação física não proporcionam nenhuma educação e cultura desportiva aos jovens portugueses e como os programas de educação física não incutem uma cultura desportiva aos jovens portugueses estes também não compram jornais.

8- Há muito que tenho para mim, praticamente há quase trinta anos, desde que trabalhei com Eduardo Miragaia e Octávio Ribeiro no então Gabinete do Desporto Escolar ao tempo de Roberto Carneiro  que existe uma possibilidade de conjugação de interesses estratégicos entre a educação física e o jornalismo. O problema é que estamos perante duas classes profissionais excessivamente corporativas que se julgam detentoras da verdade que elas próprias constroem pelo que recusam qualquer opinião de ordem externa. Todavia, os jornais não se leem sem leitores e o desporto não se desenvolve sem jornais. Ora, é a juventude que estabelece a ponte entre estas duas realidades. O problema é que os programas de educação física do ponto de vista da sua superestrutura são um  desastre social e os jornais do ponto de vista da sua afirmação entre a juventude são outro.

9- Nos momentos de crise é de fundamental importância voltar às origens, aos valores seminais, aos projectos que estiveram na origem de tudo o que viria a acontecer. O momento do arranque da educação física na era moderna foi, certamente, o ano de 1762. O protagonista  o médico naturista de nacionalidade suíça, de seu nome Jacques Ballexserd  (1726-1774) e o meio o livro publicado naquele ano intitulado “Dissertation sur l'Éducation Physique des Enfans, Depuis Leur Naissance Jusqu'à l'Âge de Puberté” onde, numa perspetiva eminentemente cartesiana e higienista, Ballexserd, utilizando pela primeira vez o  termo educação física,  estabeleceu um conjunto de recomendações higiénicas para o desenvolvimento das crianças e dos jovens até à puberdade. Nas suas recomendações incluiu os “exercícios dos jogos” que deviam fazer parte do processo educativo. A fim de se estruturar uma ideia devidamente fundamentada sobre aquilo que se deseja para o futuro, talvez não fosse mal pensado regressar-se às origens, a Ballexserd e aos gimnasiarcas do século XIX até chegarmos a Pierre de Coubertin já em finais do século e ao grande projeto desportivo à escala do Planeta que se viria a desenvolver durante todo o século XX. Quanto aos jornais, para além do Gymnasta cuja primeira edição surgiu em 1878, os desportivos, tais como O Sport, O Sport Velo e, entre outros, o Tiro e Sport começaram a surgir a partir dos anos noventa do século XIX. Eles foram os principais promotores do espírito desportivo na passagem do século XIX para o século XX. Hoje, são representados pel’ A Bola, o Record  e O Jogo mas já sem o esplendor do passado ao tempo em que os jornais sentiam responsabilidade pelo desenvolvimento do desporto e, por isso, tinham um negócio. Quer-me parecer que agora funcionam mais com um negócio que pouca ou nenhuma capacidade têm de influir no desenvolvimento. Em consequência, estão perante a contingência de ficarem sem um negócio porque ele não é alimentado a montante.

10- Não existem soluções simples, rápidas e eficazes. Vivemos tempos de: (1º) Volatilidade em que tudo muda frequentemente de forma; (2º) Incerteza em que o estado de dúvida é permanente; (3º) Ambiguidade em que os problemas sugerem diferentes caminhos para a sua solução; (4º) Complexidade que exigem líderes capazes coordenarem e integrarem equipas constituídas por especialistas de diferentes saberes.

O problema é que os líderes já não são o que outrora costumavam ser.