Espaço Universidade Vítimas do desporto (artigo de Armando Neves dos Inocentes, 27)

ESPAÇO UNIVERSIDADE17.05.202023:28

O mito do fomentar a saúde é uma das bandeiras do desporto. O cliché “o desporto dá saúde” é mais que conhecido… mas nada há de mais errado! O desporto tritura o competidor, levando este a aceitar riscos e a conviver com a dor, assim como o leva a interiorizar poder superar os limites do seu desempenho, porque, para além de vencer ou de ganhar dinheiro, é motivado pela crença de que ser um ‘verdadeiro atleta’ implica assumir riscos para a sua própria saúde, fazer sacrifícios e jogar o preço de ser tudo aquilo que quiser alcançar.

Em Março de 2007, no Congresso denominado «Morte Súbita no Desporto» realizado em Lisboa, Gomes Pereira, médico do Sporting e professor universitário, teve a oportunidade de afirmar que “o treino é uma agressão. A alta competição pode ter contornos prejudiciais para os atletas”. Nesse mesmo evento foi secundado por Rui Miller, médico do Belenenses e também professor universitário, que declarou que “a alta competição é extremamente prejudicial para o atleta”.

Num comentário ao meu artigo anterior colocaram esta questão: “E qual é a percentagem de desportistas com maleitas ósseas e articulares graves por terem feito desporto?” Não me é possível responder taxativamente a esta questão por dificuldades estatísticas mas mesmo que fosse 0,002% passaria a ser 100% se fosse com o referido comentador… ou com um filho seu… ou com o seu melhor amigo…

Mas vou tentar responder a esta questão com alguns exemplos.

Roger Riviére, ciclista francês, 24 anos, 1960; Yelena Mukhina, ginasta soviética, 20 anos, 1980; Dennis Byrd, jogador de futebol americano, 26 anos, 1992; Reggie Brown, 23 anos, também jogador de futebol americano, 1997; Sang Lan, ginasta chinesa, 17 anos, 1998; Takuma Aoki, motociclista, piloto oficial da Honda, 24 anos, 1998; Charles Manosalva, chileno, salto com vara no desporto escolar, 16 anos, 2002; Kira Gruenberg, austríaca, saltadora com vara, 22 anos, 2015. O que há de comum entre estes desportistas? Exactamente o mesmo que têm em comum com Tiago Sousa: em Janeiro de 2005 este atleta de ‘tumbling’ do Lisboa Ginásio Clube, aos 20 anos, contraiu uma lesão na coluna durante um treino ficando paraplégico.

Se a estes casos juntarmos o do piloto inglês de BMX Stephen Murray, de 27 anos, ou o caso de Kevin Everett, jogador dos Buffalo Bills, de 25 anos, que em 2007 ficaram ambos tetraplégicos, poderemos dizer que em 55 anos são “apenas” 11 casos… mas estes são “apenas” os que conhecemos!

Estes são casos extremos. Mas há aqueles que sujeitos a pressões de marcas, de patrocinadores, de dirigentes e até de treinadores se tornam vítimas do desporto. As sobrecargas de treino, o esforço repetitivo, os abandonos precoces da carreira de desportista e as lesões vitalícias estão aí à vista de toda a gente. E não estamos a falar de acidentes ou de casos de morte súbita…

Situações confirmadas por Pat Lafontaine, Eric Lindros e Mike Modano no hóquei no gelo na NHL, por Patrik Sjoberg no atletismo ou Charles Barkley no basquetebol, ou no futebol por Van Basten, Brian Laudrup, Vítor Martins, Eusébio e Mantorras… Aliás, o futebol é fértil nestes casos. Basta recordarmo-nos que em 2002 o inglês Matt Holmes (30 anos) e o croata Igor Stimac (35 anos) ficaram impedidos de praticar futebol, tal como em 2003 o norueguês Alf-Inge Haland (30 anos) ou em 2006 o irlandês Roy Keane (35 anos). O brasileiro Leandro Machado, também colocou fim à sua carreira aos 32 anos em 2008, devido a tendinites crónicas nos dois joelhos e em 2009 o argentino Juan Pablo Sorín, de 33 anos, disse adeus ao futebol também na sequência de sucessivas lesões.

Numa pesquisa realizada entre os anos de 1992 e 1995 nos EUA, envolvendo 680 mil atletas, os desportos onde mais lesões graves se verificam durante um ano são a luta livre (38,2%), seguida do voleibol (29,9%), da ginástica (20,6%), do basquetebol (19,2%), do futebol (13,8%), do atletismo (7,2%), da natação (5,4%) e, por fim, da esgrima (4,7%).

No boxe, Muhammad Ali aos 42 anos (1984) apresentava sérios transtornos cerebrais e sintomas de doença de Parkinson, provável consequência dos golpes recebidos ao longo dos 25 anos da sua carreira.

Em 1998 Carl Lewis aos 37 anos sofria de artroses e revelava fortes dores a andar, afirmando os médicos que a sua coluna vertebral parecia a de um homem de 60 anos, e Mike Powell, o homem que derrubou o mítico recorde de Bob Beamon no salto em comprimento, anunciou o abandonou das pistas com 35 anos devido a lesão nos adutores.

Cris Pringle, jogador de críquete neozelandês, retirou-se também em 1998, com 30 anos, devido a uma lesão num tornozelo.

A lançadora de dardo alemã Karen Forkel, acabou com a competição em 2000 devido a uma lesão num ombro aos 30 anos.

No basebol, Mark McGuire, batedor dos St. Louis Cardinal, com um recorde pessoal de 71 ‘home runs’, decidiu pôr um ponto final na sua carreira em 2001 devido a sucessivas lesões, aos 38 anos.   

O recordista mundial do dardo, Jan Zelezny, da República Checa, termina um percurso com mais de 20 anos em 2006, por já não poder suportar as dores no tendão de aquiles – tinha 40 anos.

Aos 27 anos, Sebastian Deisler terminou a sua carreira em 2007 por não conseguir suportar as sucessivas lesões. O internacional alemão, jogador do Bayern de Munique, foi operado cinco vezes ao joelho direito e em duas ocasiões teve de receber tratamento psiquiátrico. Segundo palavras suas “… os últimos anos foram um suplício. Já não jogava futebol com alegria”.

Em 2008, aos 33 anos, Maurice Greene, antigo recordista, campeão olímpico e mundial dos 100m, retirou-se da competição também devido a lesões. Afirmou na altura: “Já não consigo suportar a batalha mental de tentar regressar das lesões. O desgaste psicológico é imenso e uma pessoa fica deprimida.”

Yao Ming, o gigante chinês da NBA, com lesões que ameaçavam tornar-se crónicas e limitativas após ter sido operado a uma fractura no pé esquerdo retirou-se do basquetebol em finais de 2011.

Em 2012 é a vez de Ticha Penicheiro, a mais conceituada basquetebolista portuguesa, abandonar o desporto. Um dia após completar os 38 anos revela: “Ganhei tendinites crónicas nos tendões de Aquiles e é-me difícil correr. Quando acordo, para sair da cama estou a sofrer. Nunca na carreira tinha levado uma injeção ou infiltração e nos últimos 12 meses levei dez (!) para jogar”.

A tenista chinesa Na Li, vencedora do Roland Garros de 2011 e do Australian Open de 2014, aos 32 anos revelou: "Depois de quatro cirurgias nos joelhos e centenas de injecções semanais para aliviar a dor, meu corpo implora-me para parar!" e abandonou os ‘courts’…

Aos 35 anos, após quase dois anos de afastamento das provas, Naide Gomes não resistiu a lesões crónicas que a impediam de competir e anunciou o seu afastamento das pistas em Março de 2015. 

Em 2016, a antiga número um do mundo do ténis, a sérvia Ana Ivanovic, aos 29 anos terminou a carreira devido às várias lesões contraídas durante a mesma. O italiano Dario Scuderi, futebolista de 19 anos, termina neste ano uma carreira que mal tinha começado, pois durante um jogo sofre o rompimento duplo dos ligamentos cruzados do joelho, lesão no ligamento do tornozelo e no menisco.

O esquiador suíço Sandro Viletta, medalha de ouro nos J. O. de Inverno de 2014, abandona a alta competição em 2018, com 32 anos, dadas as lesões que o afectavam num joelho.

Já em 2020 o hoquista espanhol do Benfica Albert Casanovas anunciou deixar de jogar, com 35 anos, devido a fortes dores nas costas. No futebol saliente-se a despedida dos relvados de Václav Kadlec aos 27 anos devido a um problema num dos joelhos. Também Viktor Ahn, patinador russo de velocidade de pista curta no gelo, seis vezes medalha de ouro olímpico, colocou um ponto final na carreira aos 34 anos por causa de várias lesões: "Devido à dor contínua no joelho, à recuperação após tratamento e à reabilitação muito longa depois das competições, é muito difícil treinar no máximo"…

Tornozelos, joelhos, anca e coluna vertebral são as articulações mais atingidas. Lesões consecutivas e irreparáveis transformaram-se em lesões vitalícias e deram origem às vítimas do desporto. Gabinetes médicos, hospitais e clínicas desportivas ou de reabilitação têm nelas os seus melhores clientes. O desporto assim o exige.

Bibliografia:

Caroll, Gustav (2008). “Contre le sport – à ne pas lire en survêtement”. Paris: Anabet.

Inocentes, Armando (2018). “O desporto debaixo de fogo – entre valores e perversidades”. Lisboa: Prime Books.

Personne, Jacques (1991). “Nenhuma medalha vale a saúde de uma criança”. Lisboa: Livros Horizonte.

Armando Neves dos Inocentes é Mestre em Gestão da Formação Desportiva, licenciado em Ensino de Educação Física, cinto negro 5º dan de Karate-do e treinador de Grau IV.