Fernando Chalana: «um adeus sentido» (artigo de José Neto, 144)

Espaço Universidade Fernando Chalana: «um adeus sentido» (artigo de José Neto, 144)

ESPAÇO UNIVERSIDADE10.08.202222:10

Em 14 de Setembro de 1986, após mais um treino no Estádio das Antas, havia um recado por parte do Sr. Soares, referindo que os Drs Espregueira Mendes e Domingos Gomes me aguardavam no Hospital Santa Maria. Para lá me dirigi, entrando no quarto nº 44 e de imediato me vejo perante a equipa médica e qual o espanto, defronte a mim, oriundo do Bordéus, o génio Fernando Chalana. Mesmo antes de poder cumprimentar os presentes, o Dr Espregueira nos coloca um desafio: Chalana vai ser operado. Vamos pô-lo a jogar?...
 

Operado no dia imediato a uma grave fibrose muscular no grande glúteo, com várias derivações, permaneceu internado até 23 de setembro, iniciando a recuperação a 7 de Outubro.
 

Como estava instalado numa suite do então Hotel Sheraton (hoje Porto Palácio), iniciamos o plano de recuperação (após terminados os treinos no Estádio das Antas), na piscina e ginásio dessa instalação hoteleira, fundamentalmente com exercitação subaquática, mobilização articular e aumento gradual de resistência física, vendo aumentados os índices de fadiga detetados.
 

Ao notar uma constante presença de jornalistas, não apenas nacionais, mas oriundos de Espanha, França e Itália, resolvemos isolar o atleta dessa constante pressão, selecionando um local de estágio bem distante (Motel Santana – Vila do Conde), preparando aí um ginásio e demais condições adaptativas para um trabalho de sequente exigência atlética e funcional.
 

Iniciamos entretanto nova valência de recuperação, dirigindo-se o atleta para o Estádio da Maia, onde o significativo apoio por parte do Autarca Prof Doutor Vieira de Carvalho, foi determinante para em tranquilidade, todos os dias entre as 12.15, (após eu ter cumprido as minhas funções de metodologia de treino e recuperação nas Antas), e as 14.15 dar seguimento ao plano de treino devidamente programado, após as reuniões com a estrutura médica de apoio, inserindo de forma evolutiva as várias componentes de ordem físico atlética e técnica.
 

No final de cada dia me dirigia para Vila do Conde, onde nos espaços referidos da instalação hoteleira ou no areal das Caxinas e parques próximos, defendíamos com valentia e espírito de conquista os objetivos previamente definidos.
 

Periodicamente eram efetuados testes quer no campo, quer na unidade de Exercício Físico da secção do Hospital de S.João, orientada pelo  Dr Domingos Gomes, auxiliado pelos Dr Basil Ribeiro e Drª Carla Rego, que se resumiam a Testes Antropométricos, Cárdio Funcionais  (provas de esforço) e que na sua globalidade nos permitiam planificar de forma mais eficiente os ajustamentos na recuperação.
 

Após esta sequente metodologia, Fernando Chalana foi sujeito a uma integração sucessiva, tendo para o efeito a presença em treino de atletas do campeonato nacional de juniores na necessária e progressiva inserção técnica e competitiva, terminando esta fase com a realização de um treino em todo o terreno (conjunto), com uma equipa de 2ª Divisão, no momento F.C.P.Ferreira, clube da minha terra.
 

Todos os dados estavam lançados para então enquadrar o atleta numa estrutura altamente competitiva. Assim foi que, com grande emoção o vi entrar no Estádio das Antas, apurando na parte final da recuperação todas as especificidades do seu talento, tendo por companheiros de treino os bicampeões nacionais de 1984/85 e 1985/86.
 

No dia 30 de Dezembro de 1986 foi-lhe atribuída alta pelo Dr Espregueira Mendes, concluindo-se deste modo todo o processo de recuperação.
 

Em 2 de Janeiro de 1987 regressou a Bordéus, sendo acompanhado de um dossier de 85 páginas e uma cassete de vídeo de 1h e 20 m, registando toda a evolução da recuperação desde a intervenção cirúrgica.
 

No decorrer de todo o processo, foram inúmeros os estados de espectativa anunciados, algum desespero, inquietude e por vezes até algum desânimo, mas sempre uma luz de esperança nos conduziu à certeza do combate a quem, e eram muitas as vozes, que “abusivamente” e por desconhecimento (ou não), afirmavam que Chalana estaria morto para o Futebol.
 

Equipa médica de excelência e amigos criados pelo desejo de sempre apoiar. Recordo o Ricardo, um dos proprietários do restaurante Dom Ramon que nos acompanhava em treino. Chalana tinha o compromisso de todos os dias lá fazer as suas refeições. Tantas vezes convidado para com eles jantar, um dia fiz-me aparecido fora de tempo para verificar o cumprimento ou não da dieta estabelecida e, meus amigos, estava ali uma mesa de príncipe. Recordo que era linguado grelhado com legumes, etc … e ao peixinho só lhe faltava falar!... Pudera, quem o estava a servir era mais do que o proprietário, mas o amigo que com ele corria, suava e vestia a pele duma afetuosa cumplicidade!...
 

Também de forma frequente o nosso Presidente Jorge Nuno Pinto da Costa me interrogava sobre a evolução de Fernando Chalana, sentindo-lhe o sorriso de felicidade por ver que o empenhamento do F.C.Porto, por seu intermédio e através da nossa estrutura médico cirúrgica, dava respostas a quem outrora o havia abandonado. Vejam o relato duma entrevista de Fernando Chalana ao jornalista Carlos Machado do Jornal “O Jogo”: “ quando mais eu precisava de apoios, eles faltaram … havia um determinado clube de Lisboa que pediu a outro para eu ir lá fazer a recuperação e isso foi-me negado … mas o próprio presidente Pinto da Costa, sabendo da minha infelicidade, me aconselhou a vir ao Porto para ser observado e se necessário operado pelo Dr Espregueira Mendes. O Presidente do F.C.Porto abriu-me o coração. Os Drs Espregueira Mendes e Domingos Gomes, abriram-me as portas e o Prof. José Neto … (está escrito o seu teor, mas guardo nas marcas do silêncio, humedecido pela grata forma de o expressar o que lá está referido) e terminou … por isso levarei sempre o F.C.Porto  no meu coração.”

Falta referir que em 3 de Fevereiro de 87, o nosso clube recebeu o Bordéus no Estádio das Antas. Fernando Chalana fez todo o jogo. Tenho o registo da sua performance: 45 passes positivos e 1 negativo; 14 desarmes; 15 apoios ao ataque e 12 apoios na defesa; 8.5 Km de corrida e 4 remates à baliza e 1 pontapé de canto.
 

Ainda a anotar que no final do jogo me ofertou em suor, sorrisos e abraços, o meu prémio de jogo: a sua camisola!...

Mas … no final dessa época, o resultado de uma rotura no reto femoral da coxa esquerda, existente há 6 anos e mal curada, deixou várias sequelas e após um aturado tempo de exames e observações, saiu um verdito resultando numa nova intervenção cirúrgica para debelar esse tecido já fibroso, o que aconteceu em Maio de 87. Como nota de interesse a ser constado, nada tendo a ver com a outra lesão totalmente debelada, pois foram 8 meses passados em competição continuada e com sucesso conseguido.
 

Até que estávamos em 27 de Maio de 1987, um dia histórico na glória do meu F.C.Porto. Tudo preparado para me deslocar a Viena no dia do jogo às 07 horas, pois era necessário ficar alguém da estrutura técnica a orientar o processo de apoio e recuperação aos lesionados que haviam sido operados, caso do Lima Pereira e Fernando Gomes e treinar os não convocados: Amaral, Laureta, Vermelhinho, Eurico, Semedo, Bandeirinha, Paulo Ricardo e Jorge Plácido.
 

Algo aconteceu que me varreu a alma de dor …quando a agência me informa que esse voo foi desativado, tendo os passageiros aceitado viajar no dia anterior à mesma hora, o que implicou a impossibilidade de me deslocar, pois o plano de Artur Jorge que tinha para comigo, teria de ser cumprido com rigor e ao pormenor.
 

Na véspera da final de Viena e após o treino, comecei por andar meio perdido!... Vou apenas recordar publicamente que na noite de 26 tive um grande sonho …desses sonhos que até parecem absoluta realidade. Eu conto sem problemas: estava a assistir à missa em Paços de Ferreira celebrada pelo Padre Carlos e no momento do ofertório, um grupo de acólitos transportavam em fila as uvas, o pão, o vinho e os cestos com outras ofertas e ao aproximarem-se do altar, ouvi o coro cantar em altas vozes: PORTO …PORTO … PORTO que és a nossa glória … dá-nos neste dia mais uma alegria, mais uma vitória!... Acordei num repente e jamais preguei olho!...até parece que se estava a anunciar o futuro Campeão Europeu!... Levantei-me manhãzinha muito cedo e desloquei-me para o café Velasquez e Estádio das Antas. Andei numa roda viva… as pessoas questionavam-me: por aqui professor ?... Logo é que vai ser !.... Onde vai ver a final ?... Entretanto o saudoso bom amigo jornalista da nossa “Bola” Sr. Álvaro Braga liga-me, pois gostaria de ver o jogo comigo e entrevistar-me à medida que o mesmo se desenrolasse. Olhem, com calma desloquei-me em recolhimento à Igreja das Antas, sinceramente não me saía da cabeça o sonho de uma tal vitória anunciada!... Visitei O Fernando Gomes e Lima Pereira, passei os olhos pelo mar e … decidi ir ver o jogo no quarto 44 do Hospital S.ta Maria, onde Fernando Chalana recuperava da tal intervenção cirúrgica já referida. Aparece o Filipovic e o Sr Ávaro Braga e os três assistimos via R.T.P. a uma das maiores glórias desportivas do meu F. C. Porto, sagrando-nos como todos sabem CAMPEÕES EUROPEUS!...
 

A entrevista saiu à letra com as emoções que fui sentindo no decorrer do jogo e também com o sabor das lágrimas de tanta emoção, saboreada à distância. Recordo que mal terminou o jogo, no quarto do hospital concentrou-se uma multidão de doentes pré ou pós operados … eram muletas pelo ar … uns amparados pelos outros… gemidos de dor misturados por tanta alegria e ali bem pertinho, aquele abração bem sentido por outro “deus caído”, o génio Fernando Chalana num quarto de hospital a saborear a beleza duma conquista heroica europeia.
 

Aguardei até às tantas da madrugada pelos Campeões no Estádio, descansei 2 horitas na marquesa e às 9 da manhã do dia 28, estava no meu posto em pleno relvado a fazer cumprir o plano de treino traçado. Havia ainda um jogo de campeonato a realizar. Esse aconteceu no domingo imediato em que vencemos o Desportivo de Elvas por 6 – 0, com a reentrada em grande do Jaime Pacheco após a excelência duma recuperação aos ligamentos cruzados, 4 meses e 22 dias após a intervenção cirúrgica.

Fernando Chalana ainda me acompanhou de férias no Algarve, juntamente com Gomes e Lima Pereira, treinando bi diariamente e reiniciando a época de forma absolutamente recuperados. O caso dos meus jogadores do F.C. Porto, a tempo de ainda serem campeões do mundo em Tóquio, vencendo a 13 de Dezembro/87 o Peñarol e em 13 de Janeiro/88 a Super Taça Europeia, contra o Ajax.
 

Fernando Chalana, tendo terminado o contato com Bordéus, entretanto regressou ao seu clube de origem S.L.Benfica, a tempo de fazer uma brilhante época, inclusivamente chamado por Juca à Seleção Nacional a 12 de Outubro/88 num jogo realizado no Estádio de Gotemburgo, com a seleção da Suécia, jogando 78 minutos com a competência e genialidade de quem jamais se poderá esquecer.

Para quem dizia em 14 de Setembro de 1986 que Fernando Chalana estava acabado para o Futebol … ficou com a consciência “enraivecida”!... Estávamos perante  o renascer do génio!...
 

Guardo de Fernando Chalana uma terna e continuada estima e ainda 4 camisolas: uma do Bordéus no reaparecimento após lesão. Outra da Seleção Nacional e mais duas do Benfica, representando uma delas o seu regresso ao clube do seu coração e outra que surge após um jogo com o S. C. Braga, fazia eu parte da equipa técnica liderada por Vítor Manuel na época 1989/90. Até conto mais esta história: estagiávamos no Hotel Alfa para o jogo com o S.L.Benfica. Ao início da noite liguei, como muitas vezes o fazia para o Álvaro Magalhães (outro dos jogadores do clube da Luz que me foi confiado pelos médicos para a sua recuperação a uma grave lesão muscular, com recidivas permanentes e que ficou ao nível máximo das suas competências, como foi referido por vários órgãos de comunicação social e pelo próprio … mas isto talvez um dia mereça ter referência especial) e também o questionei como progredia o nosso Chalana. Professor - referiu-me o Álvaro – olhe que ele hoje desapareceu no final do treino e ainda sem ter visto a convocatória. Ele foi convocado para jogar contra vocês!... Claro, liguei de imediato para o meu amigo, estando ele a caminho de Beja, pois preparava-se para mais uma jornada, sendo esta de Columbofilia! … Lá retrocedeu Fernando Chalana e no dia imediato fez mais um jogão contra a minha equipa. Recordo que perdemos 1 – 0. Sabem quem marcou o golo? FERNANDO CHALANA. Mas no final, não perdi tudo – ganhei mais uma alegria de ver um génio renascido e a tal camisola com o suor ensopado e que se encontra junto de tantas outras, revertendo de saudade esta cultura do tempo que jamais se apagará!...
 

Hoje ouvi a notícia da sua morte e chorei!... eu sabia do seu estado de saúde, pois por vezes quando lhe ligava quase só me sorria … mas pelo menos ouvia a sua voz terna e simples dum génio jogador associada à delicadeza dum homem bom!...
 

Permanecerá vivo na minha memória, que cultivarei com gratidão pela relação duma dedicada estima durante esses tempos muito difíceis, perante um atleta de eleição mundial, mas acolitado duma generosidade e humildade exemplar.

Vou sentir saudades … muitas saudades!...

José Neto – Metodólogo de Treino Desportivo; Mestre em Psicologia Desportiva; Doutorado em Ciências do Desporto/Futebol; Formador de Treinadores F.P.F./ U.E.F.A.; Docente Universitário: Universidade da Maia; Embaixador Nacional de Ética e Fair Play no Desporto.